O dia das nuvens
Nuvens esfarrapadas vestem a manhã. O sol caminha.
E lança línguas amarelas e retilíneas sobre nós. Como são fortes! Cortam e
ameaçam semelhantes a espadas.
As cortinas não podem conter o dia. Dentro de casa
sequer há alguma sombra. Máquinas fotográficas, dicionários, rolos de linha
encerada, estojos, calendários, discos, lâmpadas de emergência, copos de bocas
largas, caixas de som, livros que jamais foram lidos, almofadas obesas e
verdemente nojentas, controles remotos, liquidificadores, mangas e limões.
Nenhum deles é capaz de produzir uma gota de sombra. Perderam volume e escorrem
fritos como o tempo em um quadro de Salvador Dalí.
As nuvens estão em frangalhos agora. Puindo-se
ainda mais a cada instante. Não conseguem vestir nem a barra da calça do céu. É
o calor que as vai embranquecendo. Esvaindo. Retirando-lhes aquilo que possuíam
de mais vivo: o encardido úmido da chuva que guardavam. Será que hoje chove?
Perguntou na esquina um homem vestindo um boné azul. Não respondi. Sou mal
educado, obediente, desconfiado e medroso. Em razão disso não falo com
estranhos. Se ele quer que chova que dê um jeito de costurar cada pedacinho de
nuvem que houver. Vá costurando até cobrir todo azul. Até acinzentar todo azul.
Não gostei nada desse homem de boné azul. Entretanto, como é corajoso assumindo
sua vagabundice debaixo de uma sombra suculenta!
Retalhos de nuvens se afastam. Pedaços da roupa que
vestiu a tempestade de não sei quando. Hoje as roupas são pequenas, pois o
corpo é azul toda vida. Azul e azul maior que o mundo. Maior que tudo.
Rafael Alvarenga
Itatiaia, 29 de dezembro de 2014