segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

O dia das nuvens

O dia das nuvens

Nuvens esfarrapadas vestem a manhã. O sol caminha. E lança línguas amarelas e retilíneas sobre nós. Como são fortes! Cortam e ameaçam semelhantes a espadas.
As cortinas não podem conter o dia. Dentro de casa sequer há alguma sombra. Máquinas fotográficas, dicionários, rolos de linha encerada, estojos, calendários, discos, lâmpadas de emergência, copos de bocas largas, caixas de som, livros que jamais foram lidos, almofadas obesas e verdemente nojentas, controles remotos, liquidificadores, mangas e limões. Nenhum deles é capaz de produzir uma gota de sombra. Perderam volume e escorrem fritos como o tempo em um quadro de Salvador Dalí.
As nuvens estão em frangalhos agora. Puindo-se ainda mais a cada instante. Não conseguem vestir nem a barra da calça do céu. É o calor que as vai embranquecendo. Esvaindo. Retirando-lhes aquilo que possuíam de mais vivo: o encardido úmido da chuva que guardavam. Será que hoje chove? Perguntou na esquina um homem vestindo um boné azul. Não respondi. Sou mal educado, obediente, desconfiado e medroso. Em razão disso não falo com estranhos. Se ele quer que chova que dê um jeito de costurar cada pedacinho de nuvem que houver. Vá costurando até cobrir todo azul. Até acinzentar todo azul. Não gostei nada desse homem de boné azul. Entretanto, como é corajoso assumindo sua vagabundice debaixo de uma sombra suculenta!
Retalhos de nuvens se afastam. Pedaços da roupa que vestiu a tempestade de não sei quando. Hoje as roupas são pequenas, pois o corpo é azul toda vida. Azul e azul maior que o mundo. Maior que tudo.

Rafael Alvarenga
Itatiaia, 29 de dezembro de 2014


segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

O livro que vou escrever

O livro que vou escrever

Amanhã começarei a escrever um livro. A história parece bem simples; a trama e os personagens ordinários e previsíveis. Há um rapaz que é chaveiro. Um senhor que ainda sua seu macacão. E uma moça sem mãe, que quando foi adotada ganhou um irmão chaveiro e um pai senhor de macacão suado.
Essa história é repleta de coisas não sabidas. Os diálogos, vocês irão notar se um dia eu terminar de escrever, são curtos e, às vezes, diletantes. Na casa onde moram sequer há muito o que descrever. Pois é tudo bem econômico. E mesmo os lenções se trocam raro porque são pouquíssimos os que se dispõem no armário.
O senhor do macacão suado inclina-se aos jogos de azar. Aplica mixarias. E isso lhe garante uma culpa mínima, já que jamais ganhou qualquer quina. O rapaz que é chaveiro fez as contas esse ano. De tanto que o pai aposta dava para comprar uma bicicleta de segunda mão, entretanto melhor que a usada por ele. Já a moça que não tem mãe não sabe bem o que poderia ser uma vida melhor. Uma vida diferente! Foi o máximo que disse uma vez em resposta a si mesma quando um vento agradável lhe refrescou o rosto colocado à janela.
Bem, o livro ainda não tem título. E não é também, como pode ter parecido até agora, somente uma tristeza morosa e corriqueira. Nele há a esperança da moça. Ela espera pelo Ano Novo. Espera uma mudança que ainda não ocorreu. E esse talvez seja seu maior problema. Espera muito. Espera um ano inteiro. Se seu ano começasse amanhã ela poderia enlouquecer e mudar de vida. Se seu ano pudesse começar muitas vezes por ano, melhor ainda seria. Mas não! Seu ano começa e termina uma única vez por ano. E isso ela considera bendito, romano, sagrado! E assim segue sua vida, tendo apenas uma pobre chance por ano de viver alguma mudança nesse livro que eu começarei a escrever amanhã.

Rafael Alvarenga

Itatiaia, 14 de dezembro de 2014

domingo, 14 de dezembro de 2014

Declaração de existência literária

Declaração de existência literária

Declaro para os devidos fins, a pedido da parte interessada, que a crônica em questão, de Nome: Declaração de Existência Literária. Nacionalidade: brasileira. Estado civil: outros.  Profissão: servidora de nada. Nascida aos 14 de dezembro de 2014, sob a cédula de identificação: documento do word 97-2003 com as seguintes características: verdana 12, alinhamento justificado, espaçamento simples, margens: superior e inferior 2,5 cm, direita e esquerda 3,0 cm.  Orientada ortograficamente pelo DECRETO Nº 6.583, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008. Residente no endereço www.ninhodeletras.blogspot.com.br, exerce o cargo de CRÔNICA na Literatura Brasileira, tendo apresentado documentação legal para tal.
Nós, abaixo assinados, declaramos e atestamos que conhecemos perfeitamente a crônica Declaração de Existência Literária e em razão disso certificamos sua idoneidade frente ao que seja necessário:
Ele, Rafael Alvarenga, residente na rua Ramsés III, nº 89, Vale dos Reis, na cidade de Itatiaia-RJ.
Ele. Eudemim Vivêncio, residente na rua Ramsés III, nº 89, Vale dos Reis, na cidade de Itatiaia-RJ.


Por ser verdade, firmo o presente para que surte seus efeitos legais.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Minha amiga crônica

Minha amiga crônica

Eu e a crônica... já trabalhamos juntos até horas tão tardias que sequer ousei conferir o relógio. Isso foi em momentos que à nossa guarda havia apenas uma luz amarela e direcionada. É que sempre confiei muito nela. Segredos que jamais entreguei a meu pai ou ao meu melhor amigo foram divididos com ela. Por isso ela sabe tudo que eu penso sobre a vida. Mesmo que isso represente coisa inaudível ou até mesmo equivocada. Ela sabe o quanto eu gosto do meu quintal. Sabe até que eu jamais saí de um quintal. A crônica sabe o que eu vejo nos beija-flores e nas roseiras. E ela acredita em mim de forma conscienciosa, generosa e alegre. Para mim ela é como uma grande e velha avó.
Nossa relação não tem queixumes. Estou certo de que a compreensão do outro tolera o tempo que às vezes ficamos sem nos falar. Há tardes em que voltamos por algum caminho, mas cada um vai pisando por um lado da rua. Cada um vai chutando as pedrinhas que escolher e olhando o que a visão tiver. Assim vamos muitas vezes. E quando a tempestade vem armando lá das bandas da serra nós observamos em silêncio. Afoitos como crianças à espera do grito que anuncia a corrida. Quando os primeiros pingos grossos nos saúdam pelos peitos apertamos o passo e nos entreolhamos. Em seguida corremos. Eu com minhas pernas a crônica com as dela. Chegamos a casa esbaforidos e molhados. Às vezes nos falamos. Às vezes escrevemos.

Rafael Alvarenga

Itatiaia 04 de dezembro de 2014

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Avarandado

Avarandado

Chegou um maço de telhas vermelhas, um morro miúdo de areia e outro de brita. Cada saco de cimento pesa tanto quanto um defunto muito gordo.  Já os tijolos são poucos. Mas sequer contei. Se faltar um é melhor que eu nem saiba. Os orçamentos, as contas e as dívidas, esses já chegaram também. Aliás, vieram bem cedo e sua idade é irrevogável. Acho que será amanhã que começa a obra. Quebrarão algumas partes, montarão outras. E assim encaixarão o madeirame nos pontos previamente calculados, costurando uma rede de peças e ripas. E aí estará tudo pronto! Pronto para que um desejo infindável de permanecer sob a sombra que o avarandado oferecerá corra sobre mim como uma besta selvagem, sem moral, freio e rumo.
O trabalho dignifica o homem! Direi ao pedreiro. Acho que ele ganha mais dinheiro que eu. E talvez ele seja mesmo mais digno que eu. Posto que fazer crescer uma parede é menos malfadado que criar linhas e linhas sobre uma página solitária. Além do que, seu trabalho será elogiado por todos aqueles que me visitarem. Ao sentarem-se à sombra descansando a pele do calor desse verão pleno, sentirão enorme prazer. E embora tantos de nós mal saiba fazer uma varanda ou um livro, dirão elogios apenas do primeiro. Sobre o segundo se calarão para evitar amolações.
Há pouco ligaram também para informar sobre pregos e vergalhões. Falaram de comprimento, diâmetro e peso. Queria dizer que estava à crônica àquele momento e que a ligação desconcentrava. Mas silenciei e acabei por me declarar ignorante. Ignorante de qualquer coisa que preste.

Rafael Alvarenga
Itatiaia, 06 de novembro de 2014


domingo, 12 de outubro de 2014

Uma crônica sobre o calor

Uma crônica sobre o calor

Agora é um momento em que todos dormem – eu mesmo gostaria de dormir, mas não sem antes dizer uma crônica. Devo esclarecer logo, que agora é dia. Dia ao meio. Estamos bem distantes de qualquer vestígio de noite. Há inclusive um mormaço amarelado, esvoaçando docemente como se fosse um pedaço de fino véu preso ao batente de portas e janelas.
Mas é claro que isso é somente delírio de minha cabeça mal acostumada às inventices da literatura. Ocorre mesmo que o céu nublado dispersa a luz tornando-a difusa. Então fica parecendo que ela é irradiada de todos os lados de qualquer coisa. Antes fosse assim. Afinal, quantas vezes a vida toda não se parece com um pedaço de inventice?
À porta da cozinha, dorme o cachorro. O chão gelado lhe refrescando o pelo grosso. E os passarinhos se aproveitando vem à mesa bicar o farelo do biscoito que ali ficou. São lindos esses passarinhos! E graças a Deus não respeitam a minha presença. Invadem a cozinha, invadem a casa. E só não leem um livro porque estão todos fechados agora.
Até as pessoas estão todas fechadas agora, quando dormem. Num quarto está uma criança que ainda não despertou para o almoço; noutro cômodo uma pessoa mais velha dormindo pela refeição feita. Nesses dias ferventes os animais noturnos caçam lembrados pelo ronco da barriga. Pois, não fosse isso, se deixariam pelas sendas envaidecendo sua condição notívaga, tão mais agradável nesta estação.
Inclusive eu tenho de parar. Tenho de fechar a crônica. Porque o sol já me alcança os olhos. Já me ata as mãos. Já assina meu nome logo aqui abaixo.

Rafael Alvarenga

Itatiaia, 12 de outubro de 2014

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Ela Chegou

Ela chegou

Eu já estava muito preocupado com você. Sei que avisara sobre a longa ausência. E, é claro, agradeço por esse obséquio. Contudo fiquei aqui, acordando no meio da noite, crendo tê-la escutado chegando pelo quintal. Outras vezes quando vinha para casa, o sol e a poeira me castigando pelo caminho, pensei seu nome em voz alta, de forma abatida e saudosista. Quem ouvisse diria se tratar de falecida. Mas eu sabia, você voltaria bem a qualquer momento.
Eu tinha na cabeça uma frase que julgava ótima para iniciar uma crônica inteiramente dedicada a toda sua existência. Mas como você não vinha me sentia como que pouco a vontade para dizê-la em substantivos e adjetivos escolhidos a dedo.
Tanto júbilo já me dera sua presença. Entretanto como era duro saber que havia de dividi-la com tantos outros; a bem da verdade, com todos os outros. Era eu quem a chamava. Clamando seu nome num amor cheio de pudor. Bastava um pedaço de braço seu caindo sobre o mundo para me esquentar a insônia.  Mas sua generosidade encantadora derramava-a nua, como se vem ao mundo, na casa de Pedro, de José, de Antônio, de Rafael, de João.
Depois de todos esses pensamentos ontem você chegou. Primeiro na forma de uma chuvinha fina, engrossando aqui e ali. E que perfume trazia! Que elegância ao andar pela rua! Cheguei a abrir a janela. Deixando-a entrar um pouco. Em seguida fui ao quintal sob o pretexto de buscar qualquer coisa. Senti você tocando a ponta do meu nariz. Que bom que você choveu aqui. Eu já estava muito preocupado com você.

Rafael Alvarenga
Itatiaia, 21 de setembro de 2014


quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Testamento

Testamento

Deixo nessas linhas, para que saibam todos os meus herdeiros e quem mais for de interesse, as coisas mais valiosas que possuo. As riquezas todas que acumulei sem qualquer temperança. Os valores que sequer um dia consegui calcular, tanto eram perante os anos de minha vida.
Deixo os milhões de estrelas que vi. Mais valiosas que diamantes, porque não vivem de refletir luz alheia como fazem tantos de nós.
Deixo a sensação de temor e aventura que tomou meus braços e pernas quando tentei atravessar a água grossa de um rio autoritário.
Deixo a sensação que ficou na sola de meus pés quando pisei descalço em uma compridão de folhas secas esquecido do perigo de haver sob elas uma magnífica caranguejeira.
Deixo o que ficou em meus olhos naquela tarde setembrina quando ia pela trilha, cabeça baixa, pensamentos tumultuados. Até que fora como um choque, repentino e eterno, perceber o amarelo bruto e derramado do ipê selvagem no meio do mato.
Deixo também a reflexão sobre o medo, feita um dia após retornar a casa pela rua tão escura e lisa quanto casca de jabuticaba. Não era cristão, mas quando demônios mil me povoaram naquela noite bradei que Deus estava comigo.
Deixo o sabor da primeira amora mastigada. E o sentimento, àquele instante, de ter sido insensível a doçura delicada do fruto. Visto a mecanicidade bestial da mordida.
Infelizmente o que não posso deixar foi o que me disse o vento. Não sei falar dessa música instrumental. Todavia alegrem-se meus herdeiros! As belezas que lhes deixo ainda estão aí, no mundo todo.

Rafael Alvarenga

Itatiaia, 18 de setembro de 2014 

sábado, 30 de agosto de 2014

Lobo-guará


Lobo-guará
Nosso carro é tão antigo que sua cor é azul. E nessa terra de longas estradas repletas de carros cor de asfalto, ele parece um pedaço de céu sem altura. Ia se tornando coisa de álbum de figurinhas. Raridade quando atravessava as curvas empoeiradas de um inverno seco. Que pensamento esse que me sobrevinha! E eis que em manhã gelada vaga pela minha frente um animal solitário. Magro, alto, pêlo alaranjado, patas negras, como se sujas da lama que engrossava os beiços do córrego. Era um lobo-guará em pessoa! As orelhas altas e parabolicamente abertas. O passo trôpego. Talvez em desfalque de firmeza.
Ele olhou para trás. Viu nosso pedaço de céu sem altura e perpendiculou o passo mato adentro. Sumiu com todo melindre de quem pisa em galhos e cascas secas sem quebrá-los. Não dava sequer sinal do atalho pelo qual seguia. Mantinha o matagal incólume, folha após folha. E até mesmo a poeira fina e leve não se levantava à sua passagem. O lobo-guará também era já uma raridade. Ia se tornando coisa de álbum de figurinhas. Folha de enciclopédia na qual demoramos com gosto e imaginação. Um pedaço de natureza sem nenhum cativeiro. E para mim, naquele momento, garantia de que a vida ainda não estava morta. Entretanto, embora o lobo-guará voltasse para o miolo do verde, a fumaça fazia sinal mais à frente: era a queimada que lhe expulsava de sua morada.

Rafael Alvarenga

Itatiaia, 27 de agosto de 2014

sábado, 16 de agosto de 2014

Santa bola, maldita bola

Santa bola, maldita bola

Tanta tristeza que o menino sequer corria. Andava. Cabisbaixo. Quando atravessava o batente a mãe se preparava para gritar, mas desistia. Ele atravessava manso a rua estreita.
Ao fogão, ela olhou as panelas fumegantes. As mãos não podiam perder o ponto dos quitutes. Precisava entregar as encomendas. Mas será que o menino tomara jeito?
No outro lado da casa o avô. Afeiçoado à política porque idolatrara a figura de Seu Getúlio Vargas. Político que pensava na gente, dizia ele frente às propagandas eleitorais. Ora, foi justamente a aposentadoria que o permitiu formar opinião diferente sobre o menino: Estava lhe faltando algo.
Invés de lhe perguntar o que era, como faziam todos, perguntou onde estava a bola. O menino embaraçou-se. Mas içou a cabeça depois de semana. E novamente perguntou: Furou? O menino não controlou os olhos. Fugindo dentro das órbitas como um animal temendo o castigo na jaula. Entretanto como o avô não tinha mais mão para bater ele respondeu: Tá lá em cima. E apontou para o telhado alto da igreja.
Quando o avô se levantou, o menino sorriu brilhoso como noite de lua. Mas logo lhe trovejou a face quando o viu tendo com a mãe na cozinha.
Daí a pouco veio o pintor que manejava a lateral da igreja. A Mãe lhe mandara recado, que fazendo o favor e por uns quitutes fresquinhos, alcançasse a bola do menino, perdida pelo alto do telhado. À tarde trouxe a bola e o menino não se conteve, pulando sobre o salvador do seu mais precioso bem.
A mãe, por um canto da boca agradecia o favor, por outro praguejava a maldita bola que instaurava o risco de se perder o ponto do doce ainda no fogo.
Num instante a tarde jorrava meninos pela rua. Uma alegria repartida, gritada, cintilante! Santa bola, disse o avô!

Rafael Alvarenga

Itatiaia, 16 de agosto de 2014

domingo, 10 de agosto de 2014

Com medo

Com medo

O escuro da noite não tinha sequer uma estrela. Mas Ele sabia seu rumo. Caminhava firme. Contudo o vento, repentino e abusado, fazia estalar o capim seco. Ele virava o rosto de súbito na direção do ruído. Pois a mente é mais rápida que qualquer movimento, e já havia ilustrado os passos sorrateiros de quem se esquivava pela sebe.
Olhou para o outro da rua. A árvore podada tinha galhos ascendendo em ziguezague de bêbado em direção à folhagem parca. Mais uma vez a imaginação. Punha nos galhos a figura de um homem bem arrumado. Porém, talvez descalço. Ele tentava apertar o passo, mas isso era ainda mais perigoso. Na medida em que cria se proteger apenas olhando para todos os lados, tropeçava nas dobras das próprias pernas.
O Medo se materializava em arrepios pela pele toda. Mais alguns metros alcançou a luz dos primeiros postes. A rua deserta e seca empoeirava a respiração bufante. O coração corria ainda que sem pernas. E a sombra que o acompanhava era inteiramente indesejada. Porque, quando entre um e outro poste de luz, ela se dividia; jogando-o para trás e para frente, como se ele caísse em duas bandas cortadas sem detalhes. Afiada imaginação!
Havia pedras pelo chão. Iniciou a pegá-las. Encheu a mão delas. Atirou uma para dentro do mato. Outra para frente na estrada. Olhou para trás mais vez. Estava chegando a casa. A imaginação bocejava.
Diminuiu o passo e quase sossegou não fossem os olhos de um gato tremeluzirem acessos debaixo da copa curva de um arbusto entortado. O medo se alimenta de qualquer coisa!

Rafael Alvarenga

Itatiaia, 10 de agosto de 2014

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Uma galinha gorda

Uma galinha gorda

Veio me perguntar se gostava de galinha caipira. Eu pensei logo nos molhos pardos que há tanto não via mais. Respondi afirmativamente junto a um sorriso bojudo. Pois então ela me disse que traria uma galinha bem gorda. Diminuí um pouco o sorriso em vista do adjetivo dado à ave. Mas agradeci. Na verdade, por um átimo, lembrei-me de minhas artérias ainda jovens. Talvez com medo de senti-las entupidas. Podia ser uma galinha magra, ainda que com alguma carne, pensei em dizer. Não disse nada. Não adiantaria nada. Ela estava tão alegre, e me agradecia tanto, que jamais me presentearia com uma galinha magra. Seria uma galinha caipira, e bem gorda.
Senti uma fanfarrona fisgada no peito. Alguma artéria noticiando sua fragilidade.
Era melhor frisar que eu não fazia nada de mais. Eles é que me faziam um enorme favor. Pois o material que recolhiam não me tinha mais serventia. Era um estorvo! E eu, debilmente paralisado, encontrava neles uma solução. Levavam o que eu precisava que fosse levado. Eles é que me faziam um favor!
Eu tentava explicar essa inversão dos agentes favorecidos. Mas eles carregavam tábuas, escoras, mourões, ripas e estacas. E todas as vezes que passavam por mim, prostrado com os braços pendurados na cerca, me lembravam da galinha gorda.
Diziam-me que com aquele material levantariam sua primeira casa própria. E assim, seriamente felizes, me agradeciam com a firmeza do suor que lhes escorria pelas faces. Pensei em dizer que eu não podia com gordura. Determinação médica.
Fiquei refletindo, longe de qualquer ação; e eles me perguntaram se podiam levar algumas latas vazias de tinta. Claro que podiam. E recomeçaram a me agradecer, sem me deixar explicar que eles é que me faziam um favor. Davam glória aos céus por terem me encontrado. Abençoavam meu nome. E afirmavam com a rigidez de quem cumpre: Vamos trazer pro senhor uma galinha gorda.

Rafael Alvarenga
Itatiaia, 04 de agosto de 2014

   

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Estio


As nuvens estão se cansando - se esvaindo - de tanto que já choveram. Parecem até costelas embranquecendo em uma sequência arqueada o corpo dentro do qual vivemos. Costelas tão magras a ponto de mostrarem a pele azul do céu.
Entretanto o chão não reage mais. Solapado abaixo de longas poças só pode ser notado se o pé se encoraja e afunda na turvação. Esse instante é como o assinar de um armistício. As nuvens não chovem mais e o que resta de chão se rende. Esse instante é atravessado pelo tiê-sangue, pousando seu vermelho desatado no bordado verde do matagal. Chama a atenção o tiê-sangue. E também o homem que se agarra em suas muletas a fim de ir pela rua. Não tem nenhum compromisso. Veste uma boina e um suéter listrado sobre a camisa azul claro. Como o tiê-sangue esse homem sabe que não vai mais chover. Além disso, não há ninguém na rua e por isso cada passo conseguido é um voo completamente sentido.
Se fosse mais cedo nos olharia um sol caolho. Mas é a lua em formato de olho de vidro inteiro quem pisca à minha janela. E com a terra molhada a escuridão brilha afiada como fio de navalha nova.
O tiê-sangue não passa voltando. E o homem em suas muletas se cansa.

Rafael Alvarenga

Itatiaia, 10 de julho de 2014

quinta-feira, 19 de junho de 2014

A história do rato que eu não matei

                     A história do rato que eu não matei

Talvez ele tenha entrado por debaixo da porta. Tão astuto pelas brechas. Flexível e contorcido se dobrando tal um invertebrado. Tudo porque seu focinho untuoso procura ainda mais.
Quando o avistei não saí em disparada. Pois não resolvo as coisas por um ímpeto natural e resoluto. Tudo em mim é razoável, moroso e abobado. E ele com seus olhinhos mortos não via minha inércia.
Pensei em chinelo, vassoura. Mas repudiei o estrago que os líquidos viscerais do animal deixariam aos meus pés. Veneno de rato seria perfeito! Embora causasse um tanto de demora. E como viver com ele habitando os subterrâneos de minha máquina de lavar? Ou passeando descansado pela cozinha, como que procurando alimento em um branquejado bosque. Com certeza assim que eu descruzasse as pernas se alertaria e, em desespero, se encobriria.
Calcei um par de botas. E amarrando os cadarços raivosamente contorcia a boca pensando em esmagá-lo secamente. Puxei um banco, depois uma pilha de jornais velhos, depois o cesto de roupa suja, depois outras e outras coisas que a nada me serviam. Ele estava entre o último caco e a parede. Suando seu medo e amedrontando a mim, o gigante de duras botas que se aproximava carrasco para a carnificina indesejada.
Se ele pudesse me entender eu lhe pediria apenas que fosse embora no 3, e então eu começaria a contar. Tão encurralado estava que me atacaria a cara. Por isso me protegi ridículo com a pá de lixo.
Mas ele como numa odisseia homérica saiu em carreira e atravessou a cozinha em direção à porta. Saiu desesperado. E eu agradeci em um silêncio covarde.

Rafael Alvarenga

Resende, 19 de junho de 2014

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Balão

Balão

Eu nunca andei de balão. Mas outro dia li na rima de uma suave poesia que “o objeto era tão leve quanto um balão”. Lembrei-me das fotos de uma revista velha: um céu bem grande e amanhecido todo pintado de azul. E os balões coloridos voando. Tão leves que eram.
Se a gente pensar direitinho, vê que essa vida é toda torta mesmo. Um balão é enorme! Maior que um animal enorme. E pesa quilos que em outras circunstâncias não sairiam do chão assim, tão delicadamente. É um peso gigante que vai andando em voo pelo céu.
Tanta loucura! Mais impressionante ainda é saber que o homem enche a pança do balão com ar quente. Logo uma coisa que ninguém vê! Veja você! Ninguém vê o ar dentro do balão. Ainda assim a cestinha de palha amarrada em baixo da barriga dele fica cheia de gente. Todo mundo querendo andar no céu para ver a terra do alto. Todo mundo acreditando no que ninguém vê. Deus do céu! Somos assim mesmo!
O ar dentro do balão. E a mão do vento, fora dele, conduzindo por via larga. O balão pelo céu azul, tão leve, tão balão, que sequer alguém ouve seus passos aqui embaixo da imaginação.

Rafael Alvarenga
Resende, 04 de julho de 2014



sábado, 10 de maio de 2014

A história do rapaz que nunca amou a moça

A história do rapaz que nunca amou a moça

Palavras! Preciso delas para a história do rapaz que nunca amou a moça. Um rapaz esquisito que ficava com a moça para ter do que desgostar. E uma moça boba, esperançosa de tudo perfeito e feliz. Faz tempo que isso aconteceu, mas ainda lembro. Nada fez o destino. O rapaz agiu sozinho: desmanchou o namoro com o coice da palavra não. E o rapaz não pagou nenhum castigo até hoje. É milionário de não sei de quê. E a moça tem um filho feio de um outro rapaz que ela não gosta nada. Esse novo rapaz, pai do filho feio da moça sabe um pouco sobre o passado dela. Entretanto por nada desconfia do que ela ainda pensa. A moça faz para o rapaz que ela não gosta tudo aquilo que queria fazer para o que ela ainda gosta. E desse jeito vai pondo, por cima dos afazeres, uma pelúcia de felicidade.
O menino, seu filho feio, vai mal na escola. E não gosta de ir pescar com o pai nos fins de semana. Prefere ficar ao balcão da venda do avô materno. Mas como não se encontra em dar um troco sequer, o avô também lhe vai reprovando aos empurrões.
E essa mãe bem informada sabe que o rapaz antigo, ainda bem lembrado, tem uma filha linda e inteligente. Um dia a mãe chegou a pensar em como se sentiria satisfeita, e talvez vingada, - quem sabe? - se seu filho desposasse essa menina. Para que, através de uma contiguidade do amor, ela reencontrasse o rapaz.
Nunca aconteceu. Para isso jamais achei palavras.

Rafael Alvarenga

Resende, 10 de maio de 2014

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Uma forma de se destacar

Uma forma de se destacar

Um sujeito indestacável. Ouvia Beatles, bebia limonada, gostava de feijão com arroz. E a vida lhe passava também normalmente, com noites e dias, salário e contas e algumas frutas da estação. Como se pode notar, um sujeito indestacável.
Pensava muito nas coisas, especialmente em si mesmo. Até que concluísse poder até cometer uma delinquência ou profanar algum rito ou mentir. Jamais suspeitariam dele. Aquele sujeito manso, senhor de um lar tão silencioso.
Foi assim e pegou a desacatar a si mesmo, às leis que se lhe impunha. Mas como aquilo era difícil! Revoltara-se contra si e em razão disso se dividira em dois. E se um aniquilasse o outro voltaria ao ponto inicial. Seria tudo como antes. Pois uma revolta apenas empunharia novas regras.
Enfim, a briga interna entre seus dois eus era caseira.
Terrível foi no dia em que o viram bebendo água no gargalo da garrafa de vidro. Sentiu a reprovação nas pupilas alheias. Acreditou, naquele instante, ter perdido o título de indestacável. Diriam que ele ouvia uma música trash bebendo cachaça com limão. Que de sua cozinha saía um forte cheiro de vísceras cozidas. Diriam que não trabalhava, sendo assim difícil supor como pagava as contas. Diriam que ele odiava frutas e ainda que seu lixo era uma verdadeira imundície.
Um gole d’água deu ao mundo um sujeito destacável. Um sujeito antes sozinho, agora extraterrestre.

Rafael Alvarenga

Resende, 09 de maio de 2014 

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Essa manhã

Essa manhã

É insólita minha manhã. Nela não há qualquer tautologia; qualquer pessoa que me espie medrosa por detrás de alguma pálpebra.
Quem assinou esse acordo? Antes da hora a cidade é escura e vazia. A névoa soterra ruas e casas. E as luzes dos postes ganham aureolas ou anéis, pois não sei se são ingênuos ou saturnianos. Mas eis que de repente as pessoas acordam. Andam pra lá e os carros correm pra cá. O mundo ganha dia, luz e barulho em uma ordem que não altera o resultado de nada a seguir. Quem assinou esse acordo, embora pudesse, talvez sequer acorde para ver o dia nascer em poesia.
Mas eu, eu não assinei nada, eu tampouco cometi algum pecado. Eu vivo céus e infernos que se alternam em um agora instantâneo. Entretanto sou tão despretensioso que às vezes paro tudo e em meio a algum escarcéu entro em uma confeitaria e me demoro a escolher, até que peço um pedaço de bolo de chocolate.
A manhã vai acabando. E tudo que posso fazer é ligar uma música no volume máximo. Por um instante o som culminante entra por todos os sentidos. O sol crescendo sobre a cidade. A música não me deixa ver que significa um cortejo fúnebre levando a manhã morta. Vai ser enterrada embaixo de uma árvore muito grande. Onde não cresce grama, onde as raízes aparecem num nó entre planta e terra esfarinhada.
A manhã já acabou.

Rafael Alvarenga
Resende, 08 de maio de 2014


domingo, 4 de maio de 2014

Cor de olhos

Cor de olhos

Conhecemos-nos na infância. Lembro-me dela dentro de um vestido violeta. Lembro-me, aliás, que tudo dela tinha cores berrantes. Até seus olhos jorravam, à altura da minha visão, um azul aceso que em algumas ocasiões me amedrontava. Chegava a crer que aquilo era cor de olho de vampiro ou outra coisa fantástica.
Jamais a esqueci. Um dia, que para mim não tinha data, minha família se mudou da cidade. Vivi então uma adolescência cheia de olhos cujas cores eram triviais. Além disso, não acreditava mais em núpcias como antes. Agora a união tinha outros ensejos.
***
Alegra-me muito saber que a vida seja feita de tantos reveses. Outro dia reencontrei num relance, aquelas cores rascantes e inesquecíveis dentro de dois olhos. Prontamente reacreditei em tudo quanto havia desacreditado.
 Ela me chamou pelo apelido. Constrangi-me feito um menino.
Perguntamos pela vida e ela disse estar ali à espera do filho mais velho. Tinha quatro. Quatro filhos! E eu desprovido até dos sonhos de infância. Ela ficou olhando invariavelmente, como fazia sempre. E eu perguntei pelo óbvio: os quatro filhos. Ao que me respondeu de olhos abertos que teria mais. Cinco filhos, pensei. Falei que era incomum nos nossos tempos.
Não, eram todos muito comuns, ela respondeu. Tinham olhos comuns de pais comuns. Disse não estar satisfeita enquanto não tivesse um filho com os olhos dela: inesquecíveis e domadores.
Como achei aquilo uma demência, dei um número de telefone inventado na hora e disse adeus. Eu nunca quis ter um filho com olhos de cores berrantes e acesas e depois tive medo de sua psicose.

Rafael Alvarenga

Resende, 23 de abril de 2014

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Uma mãe Outra filha Um pai

Uma mãe Outra filha e Um pai

Uma esfrega o chão
Outra baderna as panelas sob a pia
Uma diz não precisar de rodo agora
Outra não se satisfaz
Uma enche balde d’água
Outra fica no meio do caminho
Uma explica que o lixo não brinca
Outra pede colo
Uma traz os tapetes do banheiro
Outra arrasta um banco pelo quarto
Uma fecha uma porta
Outra abre uma boca em choro
Uma pede que não se fique triste
Outra vai ao chão em pirraça
Uma oferece beijo
Outra quer mais, muito mais
Uma oferece companhia na brincadeira
Outra deseja cumplicidade na bagunça
Uma põe fralda no urso de pelúcia
Outra estranha
Uma explica
Outra soletra
Uma acha graça
Outra se deliga
Uma vai atrás
Outra quer novidade, muita novidade
Uma fala da louça
Outra pede papa
Uma explica que vai prender o cabelo
Outra olha, mas não esquece o que quer
Uma confere o calendário
Outra quer tudo hoje
Uma conversa
Outra se cala
Uma aproveita e se cala também
Outra remexe o que já está remexido
Uma não dá bola
Outra fala seu dialeto de Ô, Ê, Mi, PA, CÔ, CA
Uma pensa: amanhã é sexta-feira: banco, oficina, cartório...
Outra espirra
Uma acode, lenço em punho
Outra espalha brinquedos
Uma lembra-se de música
Outra leva o dedo ao botão do rádio
Uma escolhe a música
Outra sai correndo
Um olha pelo corredor
Outra lhe pede colo
Um sabe: é o ponto final do poema.

Rafael Alvarenga

Resende, 01 de maio de 2014

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Nós respeitamos muito a chuva

Nós respeitamos muito a chuva

Nós respeitamos muito a chuva. Adiamos até a visita a um amigo, pois a água caía soberana, como somente a chuva pode cair de forma soberana: por todos os buracos do céu.
Houve outra vez quando me senti impedido de decepar as daninhas que circundavam o jardim. E as daninhas lá, feito crianças travessas, me mostrando línguas, balançando os dedos verdes pelos cantos do rosto. Mas eu nada podia fazer. Não havia valentia que me fizesse ultrapassar a soleira. As daninhas zombaram de mim uma tarde inteira.
Recordo-me também de um livro que tanto desejava ler. Soube a uma época que a feira instalada no centro da cidade dispunha de um exemplar. Imaginava o personagem, aquele cavaleiro folclórico, mumificando um tempo muito antigo em suas narrativas envolventes. Mas chovia tanto! Um empecilho na busca de um livro de papel. Quando cheguei à feira, naturalmente depois da chuva, o volume fora vendido. Um homem o levara entre os dedos molhados.
E numas férias muito remotas, passamos dois dias dentro de casa. Uns até fingiam se divertir com algum jogo. Mas a felicidade estava lá na beira do mar.
Diziam que ninguém podia pegar chuva. Barbaridade! Quantas coisas ruins associavam a ela: gripe, cansaço, febre, dor, injeção, cama, hospital, tristeza, moleza, morte.
Não havia criança entre nós capacitada a ver beleza em gota de chuva. E como odiamos o senhor, bem velhinho, que um dia vimos na televisão, chapéu e enxada apostos, agradecendo pela chuva que caia no sertão!
Para nós ele não sabia nada da vida. Não sabia nada sobre o que era bom!

Rafael Alvarenga

Resende, 18 de abril de 2014

domingo, 23 de março de 2014

Um sonho que tive

Um sonho que tive

Havia um único caminho. Mas há muita estava fora de uso. Por isso flores amarelas lhe cobriam extensamente. Vimos um rio de pétalas. E as borboletas surfando nas pororocas que o vento provocava naquele amarelo de sol.
Enfim, cri ser mau augúrio começar uma caminhada pisando em flores.
Abri os dentes do meu facão. A mata era um esqueleto vivo. Magro e forte como um maratonista. Capaz de retorce-se de alto a baixo em um circense contorcionismo. Fui penetrando com dificuldade. Caminhando sob o suor da selva peluda que me envolvia. Abraçado por infinitas árvores de braços abertos para me receber para sempre ali, porque sabiam, eu não fugiria mais, nunca mais.
Belisquei-me forte. Não acordei de sonho algum. Continuei fugindo mesmo assim.
Devia seguir para o leste. Estava com sorte. Certamente teria sorte. Não pisei em uma flor amarela sequer. Mantive no mundo um tom esparramado de beleza. Errei, entretanto. O mundo não usa valores em sua panaceia de preservação de si mesmo. O mundo se alimenta do que ele mesmo carrega sobre seu coro. Engole seus próprios piolhos.
Agora havia quantos caminhos me fossem possíveis contar. E como eu aprendi tantas coisas na escola, aprendi a contar até o infinito. Agora isso me enlouquecia.
O sol murchava. A noite escondia as flores.

Rafael Alvarenga

Resende, 21 de março de 2014

domingo, 16 de março de 2014

Conquista

Conquista

Fez promessa a Santo Antônio. Garantindo ao casamenteiro terras e céus caso lhe fosse dada a graça de ter em casa todas as tardes aquele que desejava. Imaginava-o esparramado numa cadeira. O jornal suspenso pelas mãos, com o noticiário esportivo oferecendo opiniões. Queria-o! Mesmo que fosse unicamente após o trabalho.
O santo trabalhava dia e noite e mesmo assim não dava conta dos pedidos. E ela impaciente. E se houvesse alguém a sua frente na fila cuja graça desejada fosse o mesmo Ele?
Resolveu procurar um caminho mais curto. De imediato pensou em algo de sete dias. Não demorou para descobrir que podia ser até em três dias apenas. Entretanto encontrou uma mulher que lhe cobrou uma abundância. Cada dia a menos uma centena a mais nos cifrões! Sorte sua comprar o jornal naquela tarde. Nele publicava-se uma simpatia para mulher amada. Bem, serviria para homem amado também, julgou. Faltava-lhe dinheiro suficiente para tê-lo em três dias. Mas o tempo era tão curto... Ligou mesmo assim, a fim de pechinchar. Por amor, a mulher disse diretamente, não atendia ninguém. Ficava claro que, sob certa medida, o amor lhe custaria caro.
Fez a simpatia do jornal. Mas de forma alguma brigou com santo Antônio. Com o dinheiro insuficiente para trazê-lo em três dias, comprou um belo vestido de alça. Durante a festa de São Benedito, investiu em um copo de vinho. Depois negociou seu acanhamento ao olhá-lo calorosamente.
Aproximaram-se entre risos e comentários. Quando, antes do beijo, ele declarou: Você me conquistou! Ela não pestanejou e respondeu: Sou uma mulher de muita atitude.

Rafael Alvarenga

Resende, 16 de março de 2014

sábado, 8 de março de 2014

Carnaval

Carnaval

Faz muito tempo que eu vejo o carnaval. Dias clareados, abarrotados de aleluias embriagadas. E nas noites paitês de olhos abertos cintilando como estrelas.
Os mascarados vestem sorrisos incansáveis. E uma moça, muito competente funcionária pública, abandonou os óculos em casa, sobre a mais alta prateleira.
No bar da esquina da praça há muitos afazeres. Agora mais copos e pratos servem às fomes e sedes de festejo, em  razão da sexta-feira, vizinha ao carnaval, ser tratada pelo povo como sexta-feira de carnaval. Feliz, o dono do bar diz que o freguês tem sempre razão.
Mas assim o país não se desenvolve. Querem que o carnaval tenha mais dias que uma semana. Disse um homem ao parapeito de sua janela no quinto andar. Mas virou os olhos para a televisão a fim de saber a que horas sua agremiação do coração desfilaria.
Outro rapaz detesta samba. Por isso sabe exatamente quando começa e termina o carnaval. Sabe até quais são os piores dias. E assim se prepara para fugir. Compra seus víveres com antecedência. Faz reservas. E ouve qualquer outra música até se calar o último trepidante tamborim.
Aqui pela minha rua passa um pequeno carnaval nesse instante. Um grupo miúdo, alguns de olhos dissimulados, outros com pedaços de serpentinas enrolados no pescoço. Falam alto. E se me verem à janela viram zombar de mim. Escondo-me!! Queria eu que o carnaval transformasse as pessoas.
Segurando minha mão a criança acredita que o mundo mudou. O café da manhã não tem hora para acabar. E a brincadeira, lhe parece, envenenou todo ar.

Rafael Alvarenga

Itamambuca, 03 de março de 2014