Testamento
Deixo nessas linhas, para que saibam todos os meus
herdeiros e quem mais for de interesse, as coisas mais valiosas que possuo. As
riquezas todas que acumulei sem qualquer temperança. Os valores que sequer um
dia consegui calcular, tanto eram perante os anos de minha vida.
Deixo os milhões de estrelas que vi. Mais valiosas
que diamantes, porque não vivem de refletir luz alheia como fazem tantos de
nós.
Deixo a sensação de temor e aventura que tomou meus
braços e pernas quando tentei atravessar a água grossa de um rio autoritário.
Deixo a sensação que ficou na sola de meus pés
quando pisei descalço em uma compridão de folhas secas esquecido do perigo de
haver sob elas uma magnífica caranguejeira.
Deixo o que ficou em meus olhos naquela tarde
setembrina quando ia pela trilha, cabeça baixa, pensamentos tumultuados. Até que
fora como um choque, repentino e eterno, perceber o amarelo bruto e derramado
do ipê selvagem no meio do mato.
Deixo também a reflexão sobre o medo, feita um dia
após retornar a casa pela rua tão escura e lisa quanto casca de jabuticaba. Não
era cristão, mas quando demônios mil me povoaram naquela noite bradei que Deus
estava comigo.
Deixo o sabor da primeira amora mastigada. E o
sentimento, àquele instante, de ter sido insensível a doçura delicada do fruto.
Visto a mecanicidade bestial da mordida.
Infelizmente o que não posso deixar foi o que me
disse o vento. Não sei falar dessa música instrumental. Todavia alegrem-se meus
herdeiros! As belezas que lhes deixo ainda estão aí, no mundo todo.
Rafael Alvarenga
Itatiaia, 18 de setembro de 2014
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