Essa manhã
É insólita minha manhã. Nela não há qualquer
tautologia; qualquer pessoa que me espie medrosa por detrás de alguma pálpebra.
Quem assinou esse acordo? Antes da hora a cidade é
escura e vazia. A névoa soterra ruas e casas. E as luzes dos postes ganham
aureolas ou anéis, pois não sei se são ingênuos ou saturnianos. Mas eis que de repente
as pessoas acordam. Andam pra lá e os carros correm pra cá. O mundo ganha dia,
luz e barulho em uma ordem que não altera o resultado de nada a seguir. Quem assinou
esse acordo, embora pudesse, talvez sequer acorde para ver o dia nascer em
poesia.
Mas eu, eu não assinei nada, eu tampouco cometi
algum pecado. Eu vivo céus e infernos que se alternam em um agora instantâneo. Entretanto
sou tão despretensioso que às vezes paro tudo e em meio a algum escarcéu entro
em uma confeitaria e me demoro a escolher, até que peço um pedaço de bolo de
chocolate.
A manhã vai acabando. E tudo que posso fazer é
ligar uma música no volume máximo. Por um instante o som culminante entra por
todos os sentidos. O sol crescendo sobre a cidade. A música não me deixa ver
que significa um cortejo fúnebre levando a manhã morta. Vai ser enterrada
embaixo de uma árvore muito grande. Onde não cresce grama, onde as raízes
aparecem num nó entre planta e terra esfarinhada.
A manhã já acabou.
Rafael Alvarenga
Resende, 08 de maio de 2014
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