domingo, 29 de dezembro de 2013

Versos



Versos
Os versos não te esperam acordar. Tampouco se calam durante seu sono leve. Os versos que falam. Porque há versos que não falam. Que se recortam como degraus. E como é estafante subi-los apenas para chegar ao ponto final. Se ao menos houvesse uma vista para o mar (...), como disse Cecília Meireles, o último andar seria se não prazeroso ao menos compensatório. Mas não! Há versos que não falam. São como recortes em concreto e seu fim é inteiramente despossuído de vista para o mar.
Ouço passos lá na rua. Barulho de sapato antigo. Preocupo-me. Ninguém usa mais sapato antigo. Receio que seja algum fantasma muito antigo. Vestido a moda antiga. Que tocará minha campainha e pedirá para entrar. Receio muito esse tipo de crônica, pois esses homens geralmente são frágeis, mas sabem de tudo. Sabem até das intenções da gente. Embora pareçam bobos, desencarnados e tímidos.
Hoje é domingo. E eu não acordei mais tarde. Agora estou reunido à porta da cozinha de onde vejo uma barata passando retardadamente. O sol vai pondo tudo no lugar como uma mão materna. E o silêncio ganha certa resistência uma vez cromado pela luz derretida.
Se imobilizar meu corpo, talvez veja muito mais. Há tanto movimento para ser percebido quando paramos. Movimentos de cor (um amarelo perdido no peito de um pássaro preto), movimentos de aroma (a doçura de uma baunilha atada a uma pilastra).
Abri já todas as janelas! É quando o sol está rente ao horizonte o único instante em que deita em nossas camas!E deita para um amor de versos!

Rafael Alvarenga
Cachoeiras de Macacu, 29 de dezembro de 2013

domingo, 15 de dezembro de 2013

Terça-feira de verão

Terça-feira de verão

Ela esperou que todo inverno passasse. E nomeou bem uma terça-feira de verão. Era uma noite já iniciada. Mas o calor queimante quase iluminava, quase criava dia sem ofender as estrelas. Eu sabia que ela viria. Aguardei despreocupadamente. Caminhando pelo apartamento como quem caminha em busca de uma brisa.
Tocou a campainha. Ela não ouviu meus passos. Capturei-lhe o corpo todo dentro da forma bojuda do olho mágico. Vinha escondendo apenas o que cismamos não poder mostrar. Imaginei o calor de sua pele e o cheiro natural que lhe caldeirava a nuca.
Ao meu beijo sua boca esteve fria. Amarrada. Quadrada. Sem curva alguma. Perguntei se estava tudo bem. Ela respondeu não, mas que ficaria melhor. Refez o nó dos cabelos. Sentou a bolsa sobre minha mesa. Meus olhos desarmaram-se abandonados e frágeis.
Ela disse não podermos mais. Eu olhei pela janela e na rua alguém passava rindo alto. Como aquilo me penetrou diabolicamente. Ela no sofá com um short que só escondia o que cismamos não poder mostrar. Pensei em ir nadar. O motivo, segundo ela, era ela mesma. Eu estava isento de qualquer conta, culpa ou benefício. Senti-me torto como o armário que acaba de perder o calço que tanto lhe aprumava as quinas.
Ela se foi com a boca fria. Amarrada. Quadrada. Sem curva alguma. Sai à rua. Era ainda terça-feira de verão. Escondiam-se apenas o que cismamos não poder mostrar.
Ainda bem, ela esperou que todo inverno passasse.

Rafael Alvarenga

Resende, 12 de dezembro de 2013 

domingo, 27 de outubro de 2013

Filme

Filme

Na rua. No centro da cidade. A multidão fílmica. Gravando. Em cena.
Mas é fato real que todos venham e vão. Mesmo não se gostando. Mesmo caguetando o absurdo do gosto alheio. É controlada a multidão fílmica.
E se chove são mais civilizados ainda. Ora por que perdem as ruas e a parte das calçadas cresceram fora das asas das marquises. Como se viram e se roçam. Como guerreiam os guarda-chuvas. Como caem gotas mesmo naqueles debaixo das asas das marquises.
Todos ganham algum cachê para figurar. É a multidão fílmica. Gravando. Em cena.
O patrão é muito esperto. Não é o diretor. Não tem função alguma. É o dono. Muitos não sabem quanto o outro recebe. Também não prestam atenção nas camisas, nas pilastras, nos letreiros, nas bancas. Tudo veste o nome do dono.
Um homem de camisa preta e óculos escuros vai de braços soltos. Uma mulher magra de camiseta e cabelo amarelos vem segurando a alça da bolsa que pende do ombro direito. Um menino está parado no meio da multidão. Só tem sua aparência maltrapilha.
Os prédios formam enormes avenidas de sombra. A luz sem muito brilho é adequada. A multidão fílmica. Gravando. Em cena. O script decorado. A produção atenta. O diretor sentado. O dono ninguém sabe.
Cena 1. Take 1. Parte 1. Na rua. No centro da cidade. A multidão fílmica. Gravando. Em cena.

Rafael Alvarenga

Resende, 26 de outubro de 2013

sábado, 5 de outubro de 2013

Sob o céu

Sob o céu

O céu! Erguemos cabeças e olhos e não avançamos mais que quilômetros. Para depois limitarmos a dimensão das coisas à infância de nossa visão. Falta o que aos sentidos tão ricos e preciosos que possuímos?
A chuva pingando no rio, na calçada empoçada; criando ondas simétricas, cujas cristas se vão engordando a cada diâmetro engolido.
É uma benção que os pássaros já estejam de barriga cheia. Porque a chuva acalma todos nos ninhos. As árvores ascendem a juventude de suas pequenas folhas. A água como combustível; e de longe o que parecia o negrume de galhos escurecidos agora anuncia mensagens florescentes.
Fico a olhar. Há uma luz prateada refletindo do arame farpado que corre pelo muro incumbido de marcar o terreno da casa. O arame farpado corta a mão do ladrão, a bola do menino, a beleza da serra. Mas não tem fio suficiente para cortar a mais corpulenta gota d’água.
Pela soleira da porta atravessa um vento frio. Suas mãos úmidas, seus olhos irritados, sua carcaça longa e pesada a ponto de demorar pela nossa sala. As janelas estão fechadas e minha respiração não pode sair.
À medida que escurece o céu parece baixar. Isso me sufoca! Busco caibros de eucalipto, varas de bambu e vergalhão, preciso senão erguer, escorar o céu para que não me caia esmagador sobre os sentidos que tento agigantar.

Rafael Alvarenga

Resende, 05 de outubro de 2013 

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Capítulo I

Capítulo I

Esse café com leite adoçado ao sabor da rapadura é o que me corta o sono feito um machado afiado. Um gole. Outro golpe. Saio de sob a friagem do telhado e lá fora há um sol ainda de olhos fechados. As plantas crescem dentro de um verde que só é cor porque tem forma e limites.
Das bananeiras pendem os cachos como dentes múltiplos. Dúzias de frutas amarelando a manhã do sabiá. Nascem bananas o ano inteiro. Assim como nasce gente o ano inteiro. Mas nada parecidas as gentes e as bananas.
O rapaz da rua de cima comprou uma motocicleta. Toda manhã ouço o ronco da máquina, sinto o cheiro da baforada de seu motor a gasolina. Equilibrado vai o rapaz. Trabalha na companhia de energia elétrica. Faz a aferição em todo bairro. Faz sua própria aferição. Entrega sua própria conta. Paga sua própria conta. Toda tarde eu sei que ele pensa nisso depois que recosta a motocicleta no descanso dentro da garagem.
Enrolado sobre si, o cachorro forma um anel com o corpo. O pelo grosso sustentando todo peso do frio.
Como um caqui maduro. Depois tomo da enxada e devolvo aos canteiros a terra que a chuva aliciou para o quintal. Um saíra-sete-cores vem saber se estão frescas as frutas que pendurei no bambu.
No verão o calor marcará minhas mãos ao colher goiabas. No entanto, será à sombra dessas árvores crescentes que tirarei o chapéu para secar o suor e sentir a satisfação da brisa.

Rafael Alvarenga

Resende, 27 de setembro de 2013

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

O trabalho e a poesia

O trabalho e a poesia

Quanta coisa acontece na cor das flores, na altura das árvores, nos olhos das pessoas, no escorrer do rio. Quanta coisa não vejo mais. O trabalho enfadonho. Preocupado com a tarefa nem te escuto sabiá.
No mundo quanta construção! Belezas a ultrapassar apatias. E a poesia, já cantaram isso, a poesia a gente não vive. Impressiona tamanha impunidade: A beleza presa, e a feiura das tarefas de nossos honorários à solta. Mesmo todos sabendo das delinquências que cometeram.
Quem mais trabalha na burocracia, no dinheiro, nas caixas lentamente sufocantes, não tem tempo para apreciar. E Thoreau contando que às vezes permanecia um dia inteiro sentado à soleira de sua cabana mergulhado no som das flores na cor dos pássaros.
Nossa cabana também vamos construindo longe daqui. Lá é mais frio, há menos vizinhos e, portanto, não nos fará bem estar aqui trabalhando e enriquecendo todos os dias. Viremos de vez em quando. Assim como o dinheiro virá também de vez em quando.
Ficaremos lá a maior parte do ano semeando o tempo no qual crescerão as hortaliças. Seremos dos bichos que virão nos pedir comida. E não incomodaremos as pedras dorminhocas e velhas.
Convites apenas aceitaremos se pudermos ir usando as pernas. Não tenho gasolina e água beberemos do rio mesmo. Já o pão trocaremos. E a nossa alegria inventaremos, pois garanto, teremos tempo para isso.

Rafael Alvarenga
Resende, 05 de setembro de 2013

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Objeto antigo

Objeto antigo

Informaram-me que não fabricam mais o que preciso. Mas disseram haver modelos novos. Mais modernos, foi o termo usado. Instantaneamente, minha expressão estampou as cores cinzentas da decepção.
Também pode encomendar um modelo novo, inteiramente exclusivo, continuou o vendedor. E como eu mantivesse o silêncio, talvez ele julgasse que eu não houvesse ainda entendido, e, portanto explicou mais uma vez: Um modelo que somente o senhor terá. Não haverá outro por aí!
Com muita seriedade eu debati, afirmando apenas querer aquele modelo de sempre. Ou alguém que me concertasse o antigo. Ao que ele se limitou a dizer ser impossível o que eu queria, pois não fabricam mais o modelo antigo.
É desesperador! Uma coisa é escolher mudar de vício. Outra, bem diferente, é saber que o objeto ao qual se viciou, prazerosamente, não é mais fabricado.
Passei meses procurando técnicos capazes de reparar o aparelho. Quando os encontrava não tinham a peça. Em busca da qual enlouqueci! Vasculhei antiquários, mas é claro que não a encontraria por lá, fui a feiras dessas de calçada, visitei ferros-velhos e colecionadores, porém apenas comecei a desistir quando já estava mapeando os lixões da cidade.
E o vendedor crê que eu não saiba o que seja Exclusivo! Exclusivo são minhas fitas cassete, e meu toca fita que não mais funciona! E agora eles pensam que exclusivo é ser amarelo.

Rafael Alvarenga

Resende, 01 de setembro de 2013

domingo, 25 de agosto de 2013

Quando a árvore virou notícia

Quando a árvore virou notícia

Aqui estamos na época dos dentes de leão. Por qualquer margem de rio ou terreno baldio que se passe hastes finas empinam círculos felpudos.
Pelas manhãs as maritacas gritam para esquentar. E comem as sementes de uma árvore magra de folhas. É um tronco alto e atrevido no qual a morte lhe vai ascendendo e caceteando. Sobra vida somente nas sementes. Mas as maritacas engolem tudo. Seus bicos tortos, suas garras monstruosamente curvas riscando os galhos; sua cor verde, humilhando a pobre árvore seca, falecida, sem uma migalha de folha sequer.
Eu não sei o nome dessa árvore. Contudo nas manhãs quando lhe passeio sobre o corpo descarnado, tão estéril que incapaz de qualquer nuança, eu lhe atribuo nomes. Tento sorrir e distraí-la, como fazem os visitantes de lugares cheios de doentes.
Porém eu também não posso interromper minha caminhada e prostrar-me ali conversando com uma árvore prestes a acabar.
As maritacas são insaciáveis. Comem todas as sementes enquanto reclamam, creio, da árvore que não mais as produzirá. Envergonhada, raquítica, torcida, velha. Qualquer hora ela tombará. Atravessada no asfalto interromperá o transito. Aparecerão guardas, trarão motosserras, curiosos pararão para olhar, as rádios noticiarão e durante o jantar alguém comentará praguejando a árvore que o atrasou a volta para casa onde então comerá o jantar requentado.
É o fim da árvore cujas sementes as maritacas aos gritos despejaram longe dali. Não sabem as maritacas, porque não interessa nada saber, porém plantaram foi um começo. Que tomara, não seja tão noticiado como esse.

Rafael Alvarenga

Resende, 25 de agosto de 2013

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Tanto amor


Tanto amor

Ele desesperado. Catando palavras para explicar o que não havia acontecido. Palavras que, aliás, saíam quicando pela boca gaguejante. E o rosto desfigurado. Porque esfregado pela mão nervosa. Tanto amor, ele pensava, não poderia acabar por uma besteira qualquer.
Era verdade que agora ele duvidava desse tanto amor dela. Ele desesperado. Telefone à mão. À espera de algum dizer. Algum alô. Tanto era o amor. Tanto se expandira por todos os lados que agora sua casca era fina e frágil. Iminente a rachaduras.
Ele desesperado. Afinal o que acontecera? Ela não o aguardara como fazia sempre. E já rompera a eternidade de cinco minutos sem uma mensagem sequer. Falando ao amigo ele tentava explicar o que não ocorrera. Mas as palavras trocadas com ela pela manhã foram tão poucas, tão ordinárias. Não havia motivo. Ele gaguejava: Tanto amor, não poderia acabar por uma besteira qualquer.
Era verdade que ele agora duvidava desse tanto amor dela. O telefone fora de área ou desligado. Prova suficiente de tudo quanto ele não sabia. Ela se escondia. Ou se afastava?
Ele já nem gaguejava mais. Olhava além com olhos imóveis. Sua expressão ganhando contornos penosos. E nas viradas de cabeças para um e outro lado confirmava-se sua resignação. Embora a frase ainda ecoasse: tanto amor, não poderia acabar por uma besteira qualquer.
Antes de caminhar, escoltado pelo amigo fiel, o telefone anunciou a mensagem eletrônica: Passa lá em casa mais tarde.
Não sorriu, entretanto, aliviado, confessou: Eu sabia! Tanto amor não poderia acabar por uma besteira qualquer.

 

Rafael Alvarenga

Resende, 03 de agosto de 2013

terça-feira, 30 de julho de 2013

Coisa de hábito


Quando pegou a chover era dia. Os lavradores agradeceram aos céus. As galinhas procuraram a parte coberta do viveiro. Os pássaros pousaram. O açude bebeu goles longos. E os gatos vieram fazer amizade debaixo do alpendre.
Exceto as crianças, não houve quem maldissesse a chuva. A terra poeirenta. O ar malcheiroso. As plantas feiosas. E a sede que copo d’água algum tinha ímpeto de matar. Todos louvaram e esperaram.
E não que aquela fosse chuva de tempestade. Nada disso. Era contínua e branda. Chuva que não parava. Até havia dia e noite. Mas agora isso era insignificante. A chuva havia tomado o lugar do tempo.
Chovia tanto que o trabalho na lavoura perdia a colheita. As galinhas atrofiadas nasciam e morriam sobre ovos imóveis. Os pássaros duravam pousados. O açude, bêbado, expandia-se inconveniente por todos os lados. E os gatos tinham seus cios agudos a dois passos de nossos olhos.
Morria e nascia gente e chovia.
No dia quando enfim estiou nasceram flores amarelas na grama. O milharal espetou o ar com espigas cabeludas e insurgentes. Pássaros velhos ensaiaram os primeiros voos ao lado dos filhotes.
Mas as crianças não saíram a correr e brincar. E os adultos, crescidos sob chuva contínua e branda, viram naquilo um péssimo augúrio. O sol feito um olho com raios indiscretos bisbilhotando qualquer gaveta que se abrisse; qualquer faca que se amolasse; qualquer sentimento mesquinho que se escondesse.
Ficaram, homens e mulheres, acaçapados dentro de casa. Por desconhecerem um mundo sem chuva, desconfiaram. Amuados, esperaram que voltasse a chover.

Rafael Alvarenga
Resende, 29 de julho de 2013


terça-feira, 23 de julho de 2013

Um mapa

Descobri num mapa empoeirado que o tempo devora pedras. E que os caminhos são como cicatrizes no lombo do mundo. Esse mapa dormia na sombra de uma gaveta calada. No quarto mais amplo da casa de um parente meu. Parente tão velho. Entre nós tanto tempo acumulado em gerações. Não é meu bisavô. Não é meu tataravô. É aquele cujo retrato ovulado foi pintado a mão.
Viemos, pois restou a casa. Tão desmedida nessa cidade tão nanica. As pessoas vinham aqui assistir televisão pela janela. Saber das últimas notícias pelo rádio qual a todos emudecia. A cidade cabia dentro da casa.
Restou a casa. Mas devo explicar melhor. Restaram muitas dívidas. Então viemos aqui apenas assinar papeis infindáveis e saber de sua venda a fim de quitar os débitos. E nada de seu interior pode ser retirado, nos disse o representante do cobrador.
Fico a pensar a que ponto chega a mesquinharia. Dentro da casa tudo é de puro mogno, ébano ou jacarandá. E nós, com esses braços finos de colegiais, jamais seríamos capazes de carregar uma cadeira sequer.
Mas o mapa encontrado na gaveta eu resolvo levar. Sei. As estradas que ele marca mudaram de rumo. E até as montanhas foram já movidas e as pontes derrubadas. É um mapa aleijado; cego e repleto de problemas em sua geografia física.
No entanto somente ele pode me levar a um tempo tão velho. Cujos caminhos não se cartografa mais.

Rafael Alvarenga
Cachoeira de Macacu, 23 de julho de 2013

domingo, 7 de julho de 2013

O caso da praça


No silêncio da praça ocultavam-se casais de namorados. Algumas vezes camuflados entre abraços. Outras vezes naufragados no escuro que os olhos fechados oceanam. Não havia quem se destacasse como par.
Um ônibus passou com toda sua longa brutalidade. Em seguida um Sr. pedalando uma bicicleta magra, também passou. Quem não passou foi o homem recém-chegado. Aproximou-se de um dos casais, até então escondido. E os iluminou lhes dizendo palavras em alto e bom som, sem nenhuma amabilidade. O rapaz pediu, ainda que tímido, explicações para a não aceitação do namoro. Ao que o homem nada mais respondia senão “eu não aceito”.
E foi assim que os estudantes perderam a pressa de descer as escadarias fronteiriças à escola. E as janelas das casas dormideiras se abriram em flor curiosa e noturna. E os demais casais fecharam os lábios úmidos e abriram os ouvidos sensíveis a um pequeno sussurro.
Na discussão a moça não era consultada. Sua sorte era acertada a partir de mandos e desmandos. Já os expectadores, como hienas, aguardavam as vias de fato.
O rapaz abria os braços, como quem vai anunciar inocência. Depois olhava para os lados em busca de paciência ou coragem. Porém a determinação das palavras do homem o enxotou.
De algum canto da praça alguém se decepcionou. Ansiava que o problema vestisse dimensões maiores. Que se tornasse o caso da praça. Afinal, eram tantos casais e até hoje nenhum deles a publicar uma estória sequer nessas folhas de pedra. Todos calados. Namorando. Sem cobiça alguma de protagonizar o destaque que o alcaguete.

Rafael Alvarenga
Resende, 06 de julho de 2013




quinta-feira, 13 de junho de 2013

Uma crônica para Milton

Uma crônica para Milton

Esses homens Mineiros talvez nunca tenham entrado em minas. Mas como pode seu canto revelar tantas pepitas. São mineiros garimpando o diamante da poesia na indelével pressão rochosa da vida. Sua voz, sua encanto, vem andando descalça lá das Minas Gerais.
E sua voz não é apenas de garganta; é voz pesada de corpo todo. Materializando seu nome, Milton. E sua poesia feita em melodia, que os lábios são capazes de levar num assobio até a mais internacional esquina, cabe na maior das coisas.
Diz-me ele de uma sede morta em bica; de um cansaço desencarnado em rede balançando. De um coração que não deve precisar de coragem para bater.
Apoiado em seu violão cumprimenta os amigos. Talvez alguns fossem mineiros. Mas tantos outros são Mineiros. E do alforje de seus instrumentos derramam outros diamantes. Lapidadas as canções brilham em tantos lados quanto forem ouvidas. Abrem caminhos como picaretas fortes. Contudo somente podem ser tocadas por cordas e teclas e sopros e sentimentos.
Para unir mar e céu, Milton canta estrelas. Para unir o vestido e o girassol canta a cor. Para unir a estrada e o encontro canta o pó das sandálias velhas. Minas é tão grande. Somente uma canção para fazê-la caber em um pedacinho simples de emoção.
Canções preciosas. Canções em forma de caminhos: prontas para levar.

Rafael Alvarenga

Resende, 03 de julho de 2013

domingo, 9 de junho de 2013

Minha tarde

Minha tarde

No céu desta tarde as cores estão todas apagadas. E as árvores esqueléticas reclamam dessa terra pobre e arenosa. Há uma previsão de chuva. Por isso passamos o dia amuados atrás das vidraças. Aguardamos o amanhã. Porque acreditamos que depois de toda noite vira um dia.
Minha roupa está secando no varal. E na barriga de alguma amiga cresce o futuro. Mas parece que o tempo não está passando. Hoje não há vento. As folhas das árvores, os cabelos compridos, as bandeiras, a fumaça. Estão todos imóveis.
Mas os brinquedos de minha filha permanecem de olhos abertos. Todos eles tem olhos. E como se alastram por todas as esquinas da casa, me vigiam. Suspeitam das palavras escritas em silêncio.
Esses brinquedos são a única coisa colorida nessa tarde onde todos dormem. Porque é também feriado. E se não há trabalho, há passeio ou moleza.
Aqui meus vizinhos não cozinham. Nunca há um aroma apetitoso descendo pelo vão das pilastras. Chegam todos de barriga cheia.
Em minha comida as cores estão apagadas. Os potes dos temperos perderam as identificações, mas minhas mãos estão sempre limpas. E sempre mesmas.
Em minha tarde há apenas a pobreza das palavras. Essas formas rasas onde jamais caberá aquilo tudo que o fermento de nossos sentimentos faz crescer dia a dia.

Rafael Alvarenga

Resende 30 de maio de 2013

terça-feira, 4 de junho de 2013

Louco por ela



Louco por ela

Chega essa hora eu me arranjo todo. Invento pose. Marcho a mão pelos cabelos como se os fosse pentear. Bebo alguma coisa. Encaixo a roupa. Ela deve chegar por agora. Fico pensando. Não quero me apresentar de qualquer feitio. Muito menos parecer desleixado ou acabrunhado.
Fico preocupado. E os motivos são diversos. Ela não tem personalidade exclusiva. Seu comportamento varia. Por isso não sei como ela chegará hoje. Ontem mesmo me surpreendeu deveras toda a estória que me veio contar. É que andando por aí ela vê cada coisa.
Nosso namoro dura já muito tempo. E sempre é isso. Apronto-me para esperá-la. As mãos ávidas por tocá-la. Os ouvidos arreganhados para ouvi-la narrar. Houve dias em que não veio. E como isso me incomodou. No início eu bebia. Mas agora, por algo que suspeito ser dignidade, finjo não me ter doído nada. Afinal ela também finge. E age como se ontem tivesse me visitado. Normalmente.
Se eu tivesse mais o que fazer não seria assim tão dependente dela. Contudo não há outra ocupação a me agradar tanto.
Às vezes nos encontramos em lugares proibidos. Ou mesmo em horas as mais inadequadas. No entanto dou sempre um jeito. E confesso que o temor de sermos apanhados juntos me excita. Sobre isso ela nada diz. Continua agindo com rebeldia e beleza.
O nome dela é Crônica. O meu eu esqueço. Ou mesmo não importa. Sou é louco por ela.

Rafael Alvarenga
Resende, 02 de junho de 2013

domingo, 26 de maio de 2013

sobrevivência


Sobrevivência

Aqui a luta pela sobrevivência não distingue inverno de primavera. Se a chuva torna difícil nosso dia, um sol escaldante também desidrata nossa força. Que ironia! Estamos distante do Ártico. Nessa zona verde e tropical os desertos não caminham com seus enormes pés achatados de areia.

Mas a luta por comida e abrigo ainda assim é selvagem. Alguns de nós mal conseguem caçar. Ficam ao longe. Observando através de vidros, refeições suntuosas. Aguardam a carcaça.

Há quem iberne. E também quem proteja ferozmente seus frágeis e mimados filhotes que só fazem comer e depender. Outros são presas. Milhões delas. Se aqui fosse a natureza. Mas não é. Aqui a morte de um não é alimento para a continuação da vida em geral. Aqui a morte de um não é absolutamente nada de significante.

Aqui é mais frio que o Ártico. Pois não há tundra, muito menos a beleza perigosa de um tigre branco. Aqui também não é deserto. Pois não há o rigozijo estonteante de encontrar Oasis. Muito menos passam por sobre dunas vivas caravanas misteriosas. Aqui é somente verde e tropical. Nosso inimigo nos dá a mão em cumprimento. E diz que estamos juntos. Em seguida vai embora.

Cabelo postiço; perna manca; olho vesgo; ofegante e horroroso. Predadores sem beleza. Sem qualidade. Refugiados entre os trópicos.

 

Rafael Alvarenga

Resende, 22 de maio de 2013

 

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Um cofre


Um cofre

Adquiri um cofre para guardar meus segredos. Um cofre antigo. Negociado junto a um antiquário. Disse-me o mercador, que o artefato pertencera a um extraordinário soberano. Entretanto se desculpara pela precariedade de seus conhecimentos históricos. Pois não sabia se era um soberano do Curdistão ou da Kashemira. Sabia sim sê-lo um rei já defunto.
É um cofre muito pesado. Além do que é também ataviado com finas esculturas de ramos sem flores. No entanto, como o objeto não me interessava em motivo de ornamento, fiz questão de conferir sua fechadura.
O mercador, mesmo familiarizado com estranhezas, não me entendeu. Todavia frisou mais de uma vez que o cofre ainda preservava sua qualidade de guardar com segurança. Percebendo o tamanho de meu interesse nem apontou para os outros objetos. Conquanto fossem notados castiçais, bicicletas, chaleiras, telhas, lunetas, brasões e anéis.
No dia subsequente me trouxeram o cofre. Alojei-o em meu quarto. Separei meus segredos. Não eram muitos. Mas precisavam de espaço. Com cuidado pus todos eles no fundo escuro e gelado do metal.
Agora tudo que eu levava comigo podia ser contado. E eu ia por sob chuvas e trovoadas. Atravessava becos escuros. Regiões mal faladas não eram suficientes para me fazer dar meia volta. Meus segredos estavam todos guardados com segurança. De mim nada de verdadeira importância poderia ser surrupiado. E minha vida agora pareceria sempre limpa. Como as vidas que andam fingindo compostura pelas calçadas.

Rafael Alvarenga
Resende, 18 de maio de 2013 

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Frio sem luz


Frio sem luz

Nessa noite invernal as estrelas tremem de frio. Não há nuvem que lhes cubra qualquer das cinco pontas. Esse tempo põe mais medo nas pessoas que suspeita de ladrão. Dentro de casa, olhamos pela vidraça. Não há quem roube as roupas no meu varal. Nem quem veja o céu salpicado por essa poeira brilhosa.
É que não tem energia elétrica agora. E como ela nos vicia, essa energia. Pois o mundo todo fica até em silêncio. As pessoas mais corajosas, acanhadas, sussurram suposições. Alguns buscam até dormir. Outros se amuam nos cantos e se lembram de algum desleixo.
Agora é assim. Mas amanhã será dia novamente. E a vida, se me perguntarem, direi que é esse sempre repetir-se.
Hoje é que a noite há de ser referência. Num dia vindouro, quando a lembrança estender os braços a algum pedaço de coisa, agarrar-se-á a essa noite quando não havia luz nas lâmpadas.
Também é mais frio quando não tem luz. Porque ele, à vontade, caminha sobre nós. Roendo ossos e pelancas. Abraçando mãos e pés. Fluindo pelas vigas até os alicerces de nossas camas. Tudo na penumbra. Em total silêncio. Somos todos presas fáceis.
Ninguém está livre desse frio. Muito menos em uma noite sem energia elétrica.

Rafael Alvarenga
Resende, 13 de maio de2013

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Caso de vida


Caso de vida

Veio a sirene. Em seguida sobrevieram ambulância e curiosos. Talvez passassem mal nos altos da cidade. E à beira do rio os pescadores imperturbáveis solicitavam silêncio, pois não se pesca em alvoroço. Já acompanhando a curva do asfalto ia a ambulância esbaforida. Correndo para não chegar tão depois da sirene.
No local uma senhora com as mãos sobre o peito velho. Pedia cadeira e encosto. E os socorristas atendiam profissionalmente, embora supusessem certo equívoco. Afinal, o chamado era para um homem que ia morrendo nas imediações.
Mas a equipe médica não demorou a saber que o caso era de adultério. A multidão informou ter ido o homem por ali. Mas esse não é caso de médico, avisou o doutor. Deveriam chamar a polícia, completou. E o povo esmoreceu contrariado.
Mas alguém vai morrer. Disseram do meio turvo da aglomeração. A senhora tirou uma mão do peito velho e avisou que se ninguém morresse, morreria ela mesma! A multidão não vibrou porque não cabiam comemorações. No entanto o murmúrio era zonzo e levemente jubiloso. Para o boteco encaminhavam-se as apostas. Quem morreria? O marido? A esposa? O amante? Ou a mãe, que era a velha e a sogra?
                Quando o enfermeiro perguntou se levariam a senhora para o hospital, ela respondeu que não a levariam enquanto não fosse decidido quem morreria.
                Com custo se retiraram da cena médico, enfermeiro e motorista. A ambulância voltou em silêncio.
De curiosidade e vergonha ninguém morre, cientificou o médico sereno.

Rafael Alvarenga
Resende, 30 de abril de 2013

sábado, 4 de maio de 2013

Faca


Faca

Não raro lhe tratam como a um animal peçonhento. Cuidado com essa faca! Como se o fio amolado lembrasse presas enérgicas. É uma enfermidade de nossa lembrança rude.
Se as facas houvessem de ficar zangadas! Quantas laranjas descascariam escavando até esburacá-las. Quantas cebolas abandonariam em rodelas a fim de nos arrancar lágrimas doloridas. Pois as facas afiadas enxergam exageradamente bem. Sendo, portanto, nada complicado avistar um dedo desavisado.
Na maioria das vezes sua boca é maior que o corpo. Naquela um dente alongado e único abre a gengiva metálica. E ali vive dentuço. Saído de um corpo encurtado, no qual todos se agarram.
 Mas as facas são mansas; e permanecem, grande parte do tempo, depositadas. Descansando desenganadas entre a frieza de outros talheres.
Além do que não bebem, não comem. São como faquires ou ascetas, embora indiferentes à fé. E é em sua magreza firme onde se instalam um sem número de cicatrizes. Às facas é regime obrigatório verem sempre o que fazem.
Por isso, quando cegas, são torturadas. Esfregadas em pedras de amolar, em chairas, em concretos e até mesmo nos seus semelhantes.
Para elas redimir o fio é um processo cáustico e doloroso. E se não fossem somente facas diria até ser um processo que lhes alcança a alma.

Rafael Alvarenga
Resende, 02 de maio de 2013