Faca
Não raro lhe tratam como a um animal peçonhento.
Cuidado com essa faca! Como se o fio amolado lembrasse presas enérgicas. É uma
enfermidade de nossa lembrança rude.
Se as facas houvessem de ficar zangadas! Quantas
laranjas descascariam escavando até esburacá-las. Quantas cebolas abandonariam
em rodelas a fim de nos arrancar lágrimas doloridas. Pois as facas afiadas
enxergam exageradamente bem. Sendo, portanto, nada complicado avistar um dedo
desavisado.
Na maioria das vezes sua boca é maior que o corpo.
Naquela um dente alongado e único abre a gengiva metálica. E ali vive dentuço.
Saído de um corpo encurtado, no qual todos se agarram.
Mas as facas
são mansas; e permanecem, grande parte do tempo, depositadas. Descansando
desenganadas entre a frieza de outros talheres.
Além do que não bebem, não comem. São como faquires
ou ascetas, embora indiferentes à fé. E é em sua magreza firme onde se instalam
um sem número de cicatrizes. Às facas é regime obrigatório verem sempre o que
fazem.
Por isso, quando cegas, são torturadas. Esfregadas
em pedras de amolar, em chairas, em concretos e até mesmo nos seus semelhantes.
Para elas redimir o fio é um processo cáustico e
doloroso. E se não fossem somente facas diria até ser um processo que lhes
alcança a alma.
Rafael Alvarenga
Resende, 02 de maio de 2013
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