domingo, 17 de janeiro de 2016

O Calor de Laura

O Calor de Laura

        
    O frio estacionava a manhã na colorida estação de primavera. Todo e qualquer movimento era sutil. O próprio barulho parecia um chiado vindo pedir silêncio. O frio era azul. Um azul desbotado, aos poucos se desgarrando do céu. Ou que talvez fosse expulso daquele céu tão azul, tão certo de sua cor exuberante e sem mistura. Isso, o frio era o azul pálido pelo céu despejado sobre a terra, por compreendê-lo como outro azul. Por isso, agasalhar-se era fundamental. Percebiam-se mangas desabrochadas sobre os braços das camélias. Blusas, calças, suéteres, capotes, gorros, casacos rechonchudos, botões fechando colarinhos e até mesmo braços cruzados eram usados. Quase ninguém se esquecia de aquecer-se. Mas para Laura esse era o momento de ser vista.
            Saía de casa com um pequeno short de lycra, chinelos e uma camiseta; segurava, numa das mãos, o cabo preso à coleira do cachorro. De início não lhe agradava o frio. Contudo os olhares dos transeuntes apreciavam sua coragem e a estimulavam. Nas pernas brancas, rachadas pelo frio, donde escorria o calor dos vasos sanguíneos, anunciava-se, como letras em néon sobre uma placa, a alegre loja de portas abertas. Os homens olhavam e como no frio o movimento perde um pouco de movimento, os olhos demoravam-se naquelas pernas antes de saltar para outro lugar. O sono e o frio paralisavam os olhos tão interessados em estar paralisados e fechados. Para Laura isso não importava. Eles a ambicionavam como ela sempre quis. Isso era o que importava. Queria sentir-se cobiçada. Ter muitos olhos olhando-a com vontade de possuí-la. Sorria com o canto da boca e excitava-se com a cobiça alheia.
            Imaginava todos ao seu redor despindo-a com toda a força necessária para rasgar em pedaços aquele short. Diria até que não poderia fazer aquilo ali na calçada, insinuaria um não gemido, lançaria os beiços úmidos para fora da boca, tiraria uma mão grossa de cima do bico arrepiado do seio pequeno, todavia, de qualquer modo, se entregaria rápido sucumbindo ao tesão que o tempo, quando não atrofia, acumula.
            Seus lisos e ralos cabelos não acortinavam a nuca, subitamente lambida pelo vento frio e bruto que também lhe arrepiava os parcos pelos louros do braço fino. Não interessava onde era a padaria, enquanto fosse observada andaria molhada. Sentia um prazeroso calor que nenhum casaco lhe teria dado. Um calor vindo de dentro. Algo capaz de lambê-la em labaredas ardentes até o peito. Capaz de elevar-se à boca traduzido numa ordem: Eu quero agora! Queria escolher algum daqueles pares de olhos e levá-los com todos os acessórios embutidos na imagem sedenta por eles transmitida. Laura sentia trazer os olhos dos homens nas coxas finas. Admiravam e queriam suas pernas, se espantavam com sua coragem perante o azul frio e desbotado despencando do azul puro lá de cima. Parou no sinal. Abriu um pouco a base dos pés empinou-se o suficiente e abaixou-se para acarinhar o cachorro. Era observada, tinha certeza.
            Todas as outras mulheres estavam encapotadas e por mais que fossem mais belas, não provocavam a libido masculina como ela agora. Sentiu-se maravilhosa, preferida! Percebeu alguns homens andando atrás de si pelo puro e primitivo desejo de vê-la. Com o indicador e o polegar em forma de pinça, retirou das nádegas a tira de calcinha fina e quente: instrumento imprescindível para Laura, a libertina da manhã. Provocou e ouviu alguma piada. Adorou, apenas não olhou para trás. Escutou mais comentários e sussurrou para os seus próprios ouvidos: Aaahhh!!! Enquanto deliciava-se com o apetite alheio andava sem rumo. Atravessava sinais, cruzava calçadas, caminhava esbelta e leve pelo bairro. Não pedia licença, abriam passagem para Laura. Todos de olhos cravados naquelas pernas brancas e aquecidas. Um par de pernas suculentas, finas e únicas; não havia outras além daquelas.
            No entanto para Laura era uma pena já ser primavera. O frio não ultrapassaria o início da manhã. O calor do dia nascia. Pássaros cantavam em alvoroço fora dos ninhos quentes. Pessoas carregavam caixas e sentiam calor; outras pedalavam bicicletas cheias de mercadorias; outras passavam já distraídas com a blusa nas mãos. As primeiras garrafas de líquido fresco começavam a ser vendidas nas lanchonetes. Por fim, apareciam nas calçadas mulheres e pernas e bustos e rostos e costas e lábios.
            Iam para as academias com seus shorts de lycra a tornear sensualmente as curvas carnudas. Vestiam tops os quais menos escondiam e mais chamavam a atenção pelo tamanho. Mantinham rabos de cavalo para apresentar a nuca ainda amassada pelo sono. Entravam em padarias, atravessavam ruas, olhavam vitrines, iam à praia abusando do rebolado. As pernas fartas, a barriga contida. Era o fim. Agora Laura não era mais a sensação das calçadas. A concorrência lhe roubava violentamente os olhares. Ela própria agora, as olhava como se fosse um deles; um daqueles animais lambendo os beiços enquanto apreciavam. 
            Sentiu-se descartada. Não havia mais nem uma migalha de olhar, de desejo... Tudo era agora para elas, as outras. Teve raiva delas. Entretanto não podia fazer nada.
            Sentou num banco, pensou um pouco. Ninguém a olhava. Lembrou-se dos momentos da manhã deliciosa enquanto semeava a volúpia alheia. Entrou na padaria comprou uma bisnaga e voltou para casa.
            Amanhã acordaria cedo, mais cedo, e sentiria por mais tempo aquele prazer tanto precisado. Entrou no saguão do prédio e, durante a espera do elevador, olhou para trás. Decepcionou-se. O porteiro não olhava para suas pernas. Enfim, subiu com a bisnaga e esperou ansiosa a manhã seguinte. Nunca mais passaria tanto tempo sem ser desejada. Nunca mais desejaria dormir nas manhãs frias.

Rafael Alvarenga


segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Flor no chão

Flor no chão

Achei uma flor
No chão.
Três pétalas lhe sobravam.
Pensei salvá-la.
De que?
Voltei pelo caminho procurando-lhe
os pedaços, mas não sabia o seu caminho,
Fui em direção a casa, jarro d’água em pensamento.
Desisti.
Que atrocidade teria desbeiçado a flor?
Indigna formiga faminta?
Famigerado vento que me refresca a face?
Indolente passarinho que me encanta o tempo?

Achei uma flor
No chão.
Pensei salvá-la.
Desisti.
Deixei que alimentasse a formiga
Que tremulasse ao vento – uma última vez –
Que fosse ninho ao passarinho.

Salvei-a de minhas próprias mãos pensantes.

Rafael Alvarenga
Itatiaia, 04 de julho de 2015