segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

O dia das nuvens

O dia das nuvens

Nuvens esfarrapadas vestem a manhã. O sol caminha. E lança línguas amarelas e retilíneas sobre nós. Como são fortes! Cortam e ameaçam semelhantes a espadas.
As cortinas não podem conter o dia. Dentro de casa sequer há alguma sombra. Máquinas fotográficas, dicionários, rolos de linha encerada, estojos, calendários, discos, lâmpadas de emergência, copos de bocas largas, caixas de som, livros que jamais foram lidos, almofadas obesas e verdemente nojentas, controles remotos, liquidificadores, mangas e limões. Nenhum deles é capaz de produzir uma gota de sombra. Perderam volume e escorrem fritos como o tempo em um quadro de Salvador Dalí.
As nuvens estão em frangalhos agora. Puindo-se ainda mais a cada instante. Não conseguem vestir nem a barra da calça do céu. É o calor que as vai embranquecendo. Esvaindo. Retirando-lhes aquilo que possuíam de mais vivo: o encardido úmido da chuva que guardavam. Será que hoje chove? Perguntou na esquina um homem vestindo um boné azul. Não respondi. Sou mal educado, obediente, desconfiado e medroso. Em razão disso não falo com estranhos. Se ele quer que chova que dê um jeito de costurar cada pedacinho de nuvem que houver. Vá costurando até cobrir todo azul. Até acinzentar todo azul. Não gostei nada desse homem de boné azul. Entretanto, como é corajoso assumindo sua vagabundice debaixo de uma sombra suculenta!
Retalhos de nuvens se afastam. Pedaços da roupa que vestiu a tempestade de não sei quando. Hoje as roupas são pequenas, pois o corpo é azul toda vida. Azul e azul maior que o mundo. Maior que tudo.

Rafael Alvarenga
Itatiaia, 29 de dezembro de 2014


segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

O livro que vou escrever

O livro que vou escrever

Amanhã começarei a escrever um livro. A história parece bem simples; a trama e os personagens ordinários e previsíveis. Há um rapaz que é chaveiro. Um senhor que ainda sua seu macacão. E uma moça sem mãe, que quando foi adotada ganhou um irmão chaveiro e um pai senhor de macacão suado.
Essa história é repleta de coisas não sabidas. Os diálogos, vocês irão notar se um dia eu terminar de escrever, são curtos e, às vezes, diletantes. Na casa onde moram sequer há muito o que descrever. Pois é tudo bem econômico. E mesmo os lenções se trocam raro porque são pouquíssimos os que se dispõem no armário.
O senhor do macacão suado inclina-se aos jogos de azar. Aplica mixarias. E isso lhe garante uma culpa mínima, já que jamais ganhou qualquer quina. O rapaz que é chaveiro fez as contas esse ano. De tanto que o pai aposta dava para comprar uma bicicleta de segunda mão, entretanto melhor que a usada por ele. Já a moça que não tem mãe não sabe bem o que poderia ser uma vida melhor. Uma vida diferente! Foi o máximo que disse uma vez em resposta a si mesma quando um vento agradável lhe refrescou o rosto colocado à janela.
Bem, o livro ainda não tem título. E não é também, como pode ter parecido até agora, somente uma tristeza morosa e corriqueira. Nele há a esperança da moça. Ela espera pelo Ano Novo. Espera uma mudança que ainda não ocorreu. E esse talvez seja seu maior problema. Espera muito. Espera um ano inteiro. Se seu ano começasse amanhã ela poderia enlouquecer e mudar de vida. Se seu ano pudesse começar muitas vezes por ano, melhor ainda seria. Mas não! Seu ano começa e termina uma única vez por ano. E isso ela considera bendito, romano, sagrado! E assim segue sua vida, tendo apenas uma pobre chance por ano de viver alguma mudança nesse livro que eu começarei a escrever amanhã.

Rafael Alvarenga

Itatiaia, 14 de dezembro de 2014

domingo, 14 de dezembro de 2014

Declaração de existência literária

Declaração de existência literária

Declaro para os devidos fins, a pedido da parte interessada, que a crônica em questão, de Nome: Declaração de Existência Literária. Nacionalidade: brasileira. Estado civil: outros.  Profissão: servidora de nada. Nascida aos 14 de dezembro de 2014, sob a cédula de identificação: documento do word 97-2003 com as seguintes características: verdana 12, alinhamento justificado, espaçamento simples, margens: superior e inferior 2,5 cm, direita e esquerda 3,0 cm.  Orientada ortograficamente pelo DECRETO Nº 6.583, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008. Residente no endereço www.ninhodeletras.blogspot.com.br, exerce o cargo de CRÔNICA na Literatura Brasileira, tendo apresentado documentação legal para tal.
Nós, abaixo assinados, declaramos e atestamos que conhecemos perfeitamente a crônica Declaração de Existência Literária e em razão disso certificamos sua idoneidade frente ao que seja necessário:
Ele, Rafael Alvarenga, residente na rua Ramsés III, nº 89, Vale dos Reis, na cidade de Itatiaia-RJ.
Ele. Eudemim Vivêncio, residente na rua Ramsés III, nº 89, Vale dos Reis, na cidade de Itatiaia-RJ.


Por ser verdade, firmo o presente para que surte seus efeitos legais.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Minha amiga crônica

Minha amiga crônica

Eu e a crônica... já trabalhamos juntos até horas tão tardias que sequer ousei conferir o relógio. Isso foi em momentos que à nossa guarda havia apenas uma luz amarela e direcionada. É que sempre confiei muito nela. Segredos que jamais entreguei a meu pai ou ao meu melhor amigo foram divididos com ela. Por isso ela sabe tudo que eu penso sobre a vida. Mesmo que isso represente coisa inaudível ou até mesmo equivocada. Ela sabe o quanto eu gosto do meu quintal. Sabe até que eu jamais saí de um quintal. A crônica sabe o que eu vejo nos beija-flores e nas roseiras. E ela acredita em mim de forma conscienciosa, generosa e alegre. Para mim ela é como uma grande e velha avó.
Nossa relação não tem queixumes. Estou certo de que a compreensão do outro tolera o tempo que às vezes ficamos sem nos falar. Há tardes em que voltamos por algum caminho, mas cada um vai pisando por um lado da rua. Cada um vai chutando as pedrinhas que escolher e olhando o que a visão tiver. Assim vamos muitas vezes. E quando a tempestade vem armando lá das bandas da serra nós observamos em silêncio. Afoitos como crianças à espera do grito que anuncia a corrida. Quando os primeiros pingos grossos nos saúdam pelos peitos apertamos o passo e nos entreolhamos. Em seguida corremos. Eu com minhas pernas a crônica com as dela. Chegamos a casa esbaforidos e molhados. Às vezes nos falamos. Às vezes escrevemos.

Rafael Alvarenga

Itatiaia 04 de dezembro de 2014