segunda-feira, 20 de abril de 2015

Friagem e suspensão

Friagem e suspensão

A friagem é como uma suspensão de fundo de rio ou mar. Vai se acumulando, porque apenas assim ganha corpo. Mas é leve e paciente.
Com tardança toca o fundo lodoso ou arenoso de nossos poros. O frio tem muitos bocados; é que seu ser pueril somente ganha algum grama depois de inúmeras camadas.
Antes de qualquer peteleco, segue tudo bem mandrião. Até que um pé ou uma pata faz desmoronar todo peso. E num segundo tudo volta a flutuar em rodopio imprevisível.
É assim também com a friagem. Flutua pelo ar com lentidão; demora a se assentar no chão; e quando realmente descansa cria orvalho sobre a verde relva que se descolore ao amanhecer. Esfria os pés da gente. A coluna da gente. Esfria até o sabor que acorda sob a língua áspera da gente.
O mundo todo fica turvo de frio, como turvo fica o fundo do rio. Basta que acordemos, e pisemos no mundo. Basta que entremos no ar ou na água. Basta sermos como somos: um movimento!

Rafael Alvarenga

Itatiaia, 24 de março de 2015

domingo, 5 de abril de 2015

O frio do cachorro

O frio do cachorro

O cachorro se enrola. Seu pelo negro no corpo retorcido pelo frio, lembra-me enorme pedaço de fumo de rolo. O rabo sob o corpo; a cabeça sobre uma mistura cheia de pontas entre patas traseiras e dianteiras. Quando pigarreio ele abre os olhos. Entretanto não move mais nada. Sagaz, deitou-se de modo que para espreitar minha ronronice nada mais tenha que fazer além de abrir os olhos.
Lá fora a casa dele não dá passagem ao desconforto. A porta pequena e o ambiente salvaguardado do frio. Além da luz, que ainda não lhe deve ter penetrado, não anota qualquer molesto. Creio até que ela fique mais agradável já que o sol agora aparece e, mesmo tímido, serve para trazer alguma morna esperança.
Aqui, onde agora o cachorro dorme, é o caminho do vento. Pois entre a janela grande da sala e a porta da cozinha que o dia é incapaz de fechar – as portas das cozinhas são as primeiras a serem abertas e as últimas a serem fechadas. São protegidas pelo almoço e pelas conversas. E cada xícara de café é um soldado montando guarda por pias e mesas. Não há quem se atreva contra o arreganhamento da porta da cozinha -. O cachorro se aquece com minha presença. Sensível à existência e menos subjugado às tolices. Ele se aquece com a presença do outro. O outro sou eu. Eu que continuo sentindo frio. Mesmo com o cachorro ali, mesmo com a xícara de café aqui. Nada se altera.
O cachorro permanece. Enrola-se ainda mais e dorme. Eu penso no seu frio.

Rafael Alvarenga

Itatiaia, 24 de março de 2015