quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

O nome da crônica

O nome da crônica

Chamou-me a atenção a posição do sol. Faz já um andado período que ele nasce à direita da janela do meu sonho.
Chamou-me a atenção os bandos populosos de andorinhas. Não sei de onde elas vêm. Vejo pousarem silenciosamente seu cansaço nas quatro camadas de fios elétricos da rede que perpassa toda altura da rua. Não posso contar quantas são. Algumas me encaram despretensiosamente outras me dão as costas. Todas descansam e em seguida desaparecem dentro das asas batidas.
Chamou-me a atenção o maracujazeiro. Vegetal estendido em forma de braços abertos e maternais. Parece uma estátua sagrada abençoando a terra. Além disso, entregam ao mundo flores aéreas. De um lilás metafísico pingado do por do sol. Essas flores estão prontas a alçar voo. Em torno delas há muitas hélices que, se acionadas, levariam o mundo inteiro para um passeio galáctico. Ou são essas hélices que seguram o mundo? Estáticas em pleno voo como apenas o beija flor é capaz de fazer.
Chamou-me a atenção o seu humor. E as linhas tortas que suas reações são capazes de retroescavar em sua face. Também o seu sorriso me inquieta, ora porque nenhuma graça você encontrou em mim.
Chamou-me a atenção a palavra faltosa em alguma frase. Porque sem ela sobrariam os olhos e os sinais. Os projetos e as construções. Sobrariam tantas coisas. Mas a todas elas faltaria uma única palavra que fosse: seu nome.

Rafael Alvarenga
Itatiaia, 14 de fevereiro de 2015



terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Enfim, o fim

Enfim, o fim

Foi em um ligeiro instante. Uma frase curta saída com algumas sílabas bem entonadas. Mas ele se sentiu mal logo após. A estupidez não lhe era inquilina sequer das pontas dos dedos. Mas lhe batera na porta da língua naquela tarde, durante aquele desentendimento. E ele a deixou entrar e beber de sua saliva e comer de seus pensamentos, por mais que estivessem frios e salgados. Quando saiu pela mesma boca, correu nua e ingrata arrotando grosserias azedas.
Ela chorou. Talvez de alívio. Ele se escondeu. A briga silenciou a barriga que antes alertava sobre a fome. A briga silenciou a boca também. A tempestuosa desavença afugentara a fome que certamente se escondera no fundo curvo e turvo do intestino.
Tinham terminado tudo. Teve certeza. Não recomeçariam. Era o apito final. O choro durou mais um tanto, entretanto foi respirando e os olhos começaram a ver e o coração bateu como batia antes que se conhecessem.
Talvez a raiva e o desagrado tenham a força dos seus opostos. Não nos separamos antes, ele pensou, porque ainda havia entre nós a força de não nos suportarmos mais. Aliás, uma força de quilate robusto. Acho que hoje não. Porque deixamos até de nos enraivecer um com o outro. Agora sim, podemos nos separar com o sentimento colhido.
- Já chega, não é? - Ela perguntou e ele respondeu com sobriedade. Estavam juntos porque lhes desagradava o outro. Como pode? Perguntaram-se. Mas não responderam embora compreendessem que muitos são os sentimentos que unem as pessoas. Até mesmo a raiva.
Rafael Alvarenga

Itatiaia, 12 de fevereiro de 2015 

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Sob o arco-íris

Sob o arco-íris

Os olhares já se haviam derramado. E, portanto, seguiam embarreiráveis e constantes, como a água quando escorre pelo chão.
Mas aqueles eram olhares leves. Talvez porque tivessem o peso do brilho.
Eles sequer precisavam pensar em se entreolhar. Pois os olhos se encontravam da mesma forma que o imã localiza o metal. E assim, como algo que não pode mais ser desfeito ou ignorado, souberam haver ali uma paixão.
Durante muitos dias e noites, podemos até pensar em semanas, mantiveram um silêncio honesto. Nenhum ouvido soube daquele sentimento. Porque jamais era falado, apenas visto.
Mas um dia, como se fosse qualquer dia, começou a chover. E aquilo foi os amarrando. E depois os esquecendo. De modo que em algum momento sobrassem apenas ela e ele. Nesse dia se falaram mais, mas falaram as mesmas coisas de sempre. Salvava-os do tremor que quase lhes rachava os ossos esquálidos, o sorriso a queimar o rosto como benigna febre terçã.
A água não dava trégua. Estavam encurralados e não havia mais como recuar. Não havia mais defesa que se erguesse firme, hora que se atrasasse, ônibus que passasse, trabalho a fazer. E para arrebatar de vez aqueles corações, não havia outro lugar para se olhar a não ser os olhos do outro, já que a chuva embasava o mundo inteiro.
E para que tudo terminasse feliz, como o fim que as ficções se dão como de direito, ela disse que saíssem à chuva para ver o arco-íris. Ele olhou para o tempo. Não viu cor. Mas acreditou que ela soubesse das coisas. Soubesse da hora fantástica das paixões e dos arco-íris.

Rafael Alvarenga
Itatiaia, 06 de fevereiro de 2015



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