sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Capítulo I

Capítulo I

Esse café com leite adoçado ao sabor da rapadura é o que me corta o sono feito um machado afiado. Um gole. Outro golpe. Saio de sob a friagem do telhado e lá fora há um sol ainda de olhos fechados. As plantas crescem dentro de um verde que só é cor porque tem forma e limites.
Das bananeiras pendem os cachos como dentes múltiplos. Dúzias de frutas amarelando a manhã do sabiá. Nascem bananas o ano inteiro. Assim como nasce gente o ano inteiro. Mas nada parecidas as gentes e as bananas.
O rapaz da rua de cima comprou uma motocicleta. Toda manhã ouço o ronco da máquina, sinto o cheiro da baforada de seu motor a gasolina. Equilibrado vai o rapaz. Trabalha na companhia de energia elétrica. Faz a aferição em todo bairro. Faz sua própria aferição. Entrega sua própria conta. Paga sua própria conta. Toda tarde eu sei que ele pensa nisso depois que recosta a motocicleta no descanso dentro da garagem.
Enrolado sobre si, o cachorro forma um anel com o corpo. O pelo grosso sustentando todo peso do frio.
Como um caqui maduro. Depois tomo da enxada e devolvo aos canteiros a terra que a chuva aliciou para o quintal. Um saíra-sete-cores vem saber se estão frescas as frutas que pendurei no bambu.
No verão o calor marcará minhas mãos ao colher goiabas. No entanto, será à sombra dessas árvores crescentes que tirarei o chapéu para secar o suor e sentir a satisfação da brisa.

Rafael Alvarenga

Resende, 27 de setembro de 2013

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

O trabalho e a poesia

O trabalho e a poesia

Quanta coisa acontece na cor das flores, na altura das árvores, nos olhos das pessoas, no escorrer do rio. Quanta coisa não vejo mais. O trabalho enfadonho. Preocupado com a tarefa nem te escuto sabiá.
No mundo quanta construção! Belezas a ultrapassar apatias. E a poesia, já cantaram isso, a poesia a gente não vive. Impressiona tamanha impunidade: A beleza presa, e a feiura das tarefas de nossos honorários à solta. Mesmo todos sabendo das delinquências que cometeram.
Quem mais trabalha na burocracia, no dinheiro, nas caixas lentamente sufocantes, não tem tempo para apreciar. E Thoreau contando que às vezes permanecia um dia inteiro sentado à soleira de sua cabana mergulhado no som das flores na cor dos pássaros.
Nossa cabana também vamos construindo longe daqui. Lá é mais frio, há menos vizinhos e, portanto, não nos fará bem estar aqui trabalhando e enriquecendo todos os dias. Viremos de vez em quando. Assim como o dinheiro virá também de vez em quando.
Ficaremos lá a maior parte do ano semeando o tempo no qual crescerão as hortaliças. Seremos dos bichos que virão nos pedir comida. E não incomodaremos as pedras dorminhocas e velhas.
Convites apenas aceitaremos se pudermos ir usando as pernas. Não tenho gasolina e água beberemos do rio mesmo. Já o pão trocaremos. E a nossa alegria inventaremos, pois garanto, teremos tempo para isso.

Rafael Alvarenga
Resende, 05 de setembro de 2013

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Objeto antigo

Objeto antigo

Informaram-me que não fabricam mais o que preciso. Mas disseram haver modelos novos. Mais modernos, foi o termo usado. Instantaneamente, minha expressão estampou as cores cinzentas da decepção.
Também pode encomendar um modelo novo, inteiramente exclusivo, continuou o vendedor. E como eu mantivesse o silêncio, talvez ele julgasse que eu não houvesse ainda entendido, e, portanto explicou mais uma vez: Um modelo que somente o senhor terá. Não haverá outro por aí!
Com muita seriedade eu debati, afirmando apenas querer aquele modelo de sempre. Ou alguém que me concertasse o antigo. Ao que ele se limitou a dizer ser impossível o que eu queria, pois não fabricam mais o modelo antigo.
É desesperador! Uma coisa é escolher mudar de vício. Outra, bem diferente, é saber que o objeto ao qual se viciou, prazerosamente, não é mais fabricado.
Passei meses procurando técnicos capazes de reparar o aparelho. Quando os encontrava não tinham a peça. Em busca da qual enlouqueci! Vasculhei antiquários, mas é claro que não a encontraria por lá, fui a feiras dessas de calçada, visitei ferros-velhos e colecionadores, porém apenas comecei a desistir quando já estava mapeando os lixões da cidade.
E o vendedor crê que eu não saiba o que seja Exclusivo! Exclusivo são minhas fitas cassete, e meu toca fita que não mais funciona! E agora eles pensam que exclusivo é ser amarelo.

Rafael Alvarenga

Resende, 01 de setembro de 2013