quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Homens desconfiados


Homens desconfiados

No caminho os cães trotaram atrás de mim. Farejaram meus calcanhares. E viram paisagens encantadoras na poeira mágica baforada pelas minhas solas. Mas a inveja das nuvens apagou tudo. Queriam atenção somente para elas. Por isso cuspiram chuva. Com o intuito único de boicotar o monólogo de minhas andanças.
Os garnisés de penas abóboras e negras vieram assistir-me. No entanto a chuva ganhou corpo. E rápido não se falava mais em outra coisa. Procurei abrigo sob o toldo de uma mercearia. Onde, à porta, um rapaz comia uma rodela gordurenta de mortadela. Nesse disco de carne processada pontos brancos de banha pintavam búzios escrevendo algo para mim. Não sei ler o sobrenatural. Às vezes até desconfio. Conquanto, o medo ou a ignorância, me fazem apartar.
Não comprei nada. Não queria nada. Um homem veio comprar um cigarro. Os búzios da mortadela foram consumidos pelo apetite do rapaz.
Esperei que um arco íris viesse como um augúrio. Vieram crianças. Sacudiam moedas no interior das mãos fechadas. Arremessaram os níqueis sobre o balcão. O rapaz disse que só compravam dois pirulitos. Eram três meninos. Mas não souberam pedir. Fui até o balcão e paguei o terceiro doce. As crianças brilharam felizes. O rapaz vendeu, mas desconfiou. O outro, o fumante, estava prestes a me interrogar.
Saí logo. Eu não queria nada.

Rafael Alvarenga
Niterói, 21 de dezembro de 2012 

quarta-feira, 19 de dezembro de 2012

Folhinha


Folhinha

Pediu-me que comprasse o pão. E aproveitasse a visita à padaria para pedir uma folhinha. Afinal, o ano próximo estava às vésperas de rebentar em dias moços.
Cada um é filho de sua época.
Os mais jovens sacam dos bolsos calendários infinitos e virtuais. Capazes de orçar datas de um ano quando nenhum de nós estará mais aqui. No entanto, outros são de um tempo quando o calendário era de papel. Cada folha exclusivamente dedicada a um mês do ano. Onde, a cada trinta dias, também se associava uma gravura, uma fotografia, uma pintura. O calendário de folhinha era uma verdadeira obra de arte.
Lembro-me de haver neles sempre manadas de corcéis rasgando o vento; sabiás de peitoral bem definido; ou uma cesta de pães bronzeados.
A folhinha era uma lembrança e um agradecimento que os estabelecimentos ofereciam a seus fregueses e amigos. Mesclavam utilidade e beleza com fôlego capaz de durar o ano inteiro. E era ali, sobre o papel, que se comentavam os aniversários de parentes, bem como se agendava eventos e consultas médicas.
De minha parte, o que mais gostava, era fazer o “X” sobre o dia morto. Sepultando o tempo me cria forte como os heróis dos desenhos animados. Vovó consentia meu rabisco. Não se incomodava. Afinal, para ela, o calendário era somente o tempo.

Rafael Alvarenga
Niterói, 11 de dezembro de 2012

sábado, 15 de dezembro de 2012

Cama na Varanda


Cama na varanda

Então fiz a cama na varanda. E aos olhos caseiros isso soava bizarro. Como se fosse impraticável adormecer desembaulado. Como se houvesse risco na grama do nosso quintal. Desinformados! Hoje em dia até os jornais noticiam a extinção de nossos mais preciosos e famintos predadores. Da fauna brasileira restou apenas nós mesmos: mancos e anêmicos bípedes.
Nessa noite, ao invés da penumbra dos móveis caía sobre meu descanso o fulgor das estrelas. E só assim eu vi a açaizeiro cabeludo em pé a um canto do pomar. Foi quando o vento correu rebocando nuvens; alegando uma escuridão inopinada. Minha cabeça quase me empurrou para debaixo do alpendre. Espécie de fraqueza automática.
As nuvens eram um pedaço de parede chapiscada. De algum lugar sagrado ruíam muros e divisórias. Em algum lugar sagrado não haveria mais confidências. Dormiriam todos sem a proteção dos limites. Com sonhos que nada querem ter, mas que tudo podem ser.
Aguardei a chuva. Cruzei as mãos sob a nuca. Soltei os olhos pelas órbitas. Apalpei o chão com a sola dos pés. Assobiei para o vento e veio nosso cão. Lambeu-me os braços. E como um feiticeiro, bocejou para o alto num sinal oculto. Foi assim que desmanchou a ventania, as nuvens e a minha vigília.

Rafael Alvarenga
Niterói, 11 de dezembro de 2012

Cama na Varanda


Cama na varanda

Então fiz a cama na varanda. E aos olhos caseiros isso soava bizarro. Como se fosse impraticável adormecer desembaulado. Como se houvesse risco na grama do nosso quintal. Desinformados! Hoje em dia até os jornais noticiam a extinção de nossos mais preciosos e famintos predadores. Da fauna brasileira restou apenas nós mesmos: mancos e anêmicos bípedes.
Nessa noite, ao invés da penumbra dos móveis caía sobre meu descanso o fulgor das estrelas. E só assim eu vi a açaizeiro cabeludo em pé a um canto do pomar. Foi quando o vento correu rebocando nuvens; alegando uma escuridão inopinada. Minha cabeça quase me empurrou para debaixo do alpendre. Espécie de fraqueza automática.
As nuvens eram um pedaço de parede chapiscada. De algum lugar sagrado ruíam muros e divisórias. Em algum lugar sagrado não haveria mais confidências. Dormiriam todos sem a proteção dos limites. Com sonhos que nada querem ter, mas que tudo podem ser.
Aguardei a chuva. Cruzei as mãos sob a nuca. Soltei os olhos pelas órbitas. Apalpei o chão com a sola dos pés. Assobiei para o vento e veio nosso cão. Lambeu-me os braços. E como um feiticeiro, bocejou para o alto num sinal oculto. Foi assim que desmanchou a ventania, as nuvens e a minha vigília.

Rafael Alvarenga
Niterói, 11 de dezembro de 2012

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Certos brincos


Certos brincos

Poucos são capazes de morder tão firme como certos brincos. Embora os de pressão sejam banguelas persistentes, os outros concentram sua força em um único dente. A ele se resume toda sua dentição. E como é estrangeira sua anatomia. Logo a frente do dente o olho de vidro. Às vezes de rubi; de esmeralda. Às vezes ordinário, como os olhos da maior parte de nós.
Em alguns, completa sua corporatura um abdômen distendido ou uma perna comprida. Outros escapam da tarraxa. Uma espécie de mão fechada. Com dois dedos retorcidos para dentro da palma. Fortes justamente por serem tão pequenos. E independentes, de modo que, em algum momento, se vão. Caem por aí. Talvez hibernem longe do corpo do brinco. Abandonam-se. E, nem por isso, relaxam os dedos. Tanto é que, quando encontrados, continuam contraídos e frios.
Os brincos parasitam lóbulos por não terem pés. São em pares iguais. Cada um num ponto cardeal diferente da cabeça humana. Não se descobrem, todavia supõem-se.  Nascem carentes de pálpebras, não de intuição. Os brincos não piscam. Levam uma vida inteira esperando, fiel, o outro gêmeo.
Sem pálpebra e língua veem tudo sem delatar. Porém, com o tempo fraquejam. Os vagabundos vergam. Em alguns manchas escuras pintam cáries no dente velho. Menos mal, são largados ainda em forma de brinco. Pior acontece com os mais valiosos. Há casos em que lhes derretem vivos!

Rafael Alvarenga
Niterói, 25 de novembro de 2012

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Crônica de mercado


Crônica de mercado

Na cesta de pão não eram todos iguais. E como há gente de todo tipo e gosto há também pão para todo tipo e gosto. Brancos e borrachudos, tostados e crocantes.
Minha lista de compras de tão nanica cabia na memória. Faltava couve e inhame. E quanto ao inhame uma velha feirante me havia instruído a escolhê-los. Por fora são todos bem semelhantes, mas por dentro cada um é um, dizia ela falando para além de raízes.
Toda gente escolhia legumes e verduras buscando neles as características que lhes apetecessem. Afirmando, portanto, cada qual o seu cada um. Cada freguês com o seu paladar.
Eram únicos mesmo. Eu podia ver ao escolherem a couve. Cada careta; cada reprovação; cada afirmação de qualidade. Cada uma de um modo inteiramente sem par.
Era isso? Somos tão isolados assim uns dos outros? Claro que não. Pelos auto falantes do mercado soava uma música conhecida entre todos nós. Com versos que nos convocavam a amar as pessoas como se não houvesse amanhã. E todos balbuciavam a canção, intervalando estrofes, com perguntas sobre preço e peso.
E cantavam todos. Formando um coral que jamais ensaiara junto. Se alguém não cantasse perceberia essa semelhança emocionante entre todos nós: gotas d’água, grãos de areia que isolados são insignificantes, mas juntos formam mares e terras cantadas.

Rafael Alvarenga
Niterói, 03 de dezembro 2012  

domingo, 2 de dezembro de 2012

Tempestade de ontem


Tempestade de ontem

Ontem foi tempo de tempestade mor. Mas deixei para escrever hoje. Debaixo do mormaço sem sombras. Caiu vomitada a tempestade. Descarga feroz. Acuando a todos. Em minutos os vultosos fios elétricos transformavam-se em magricelas calhas negras. E um rio lodoso esculpia correntes entre as veias dos paralelepípedos.
O mundo recheava-se de fragilidade sob a chuvarada. Os telhados derretendo feito glacê confeitado. E toda sujeira das unhas, dos poros, de nossa higiene, ressuscitando após a via-crúcis urbana. Tantos dias estivera sepultada entre as entranhas do chão. Nossa sujeira caminha sobre as águas milagrosamente! Nos afronta e encurrala. Sujeira que antes crucificamos agora serpenteia pelas ruas. E a água, como um espelho, mescla nossos rostos e corpos com essa sujeira nossa. Não há horror maior do que vermos a nós mesmos na sujeira nossa. Essa sujeira qual, tanto confiamos, haveria de ir se embora com a descarga; com o saco preto; com o ralo fino da pia; com a boca larga de nossas janelas e portas.
A tempestade chicoteava pernas e persianas. Perdemos os cabelos, molhados e reduzidos. Nas costas corcundas do asfalto os pingos nascendo em papoulas brancas. Papoulas brancas e bem alimentadas, em vista do tanto de esterco disponível; esterco de nossos corpos limpos e medrosos.

Rafael Alvarenga
Niterói, 22 de outubro de 2012