sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

Lençol Branco

Lençol branco

Àquela época vivíamos uma guerra um tanto quanto fria. De forma que nos separar seria como um armistício. Sequer almoçávamos com dois pratos à mesa. Era eu ou ela. E nossa televisão, que jamais nos disse nada atraente, funcionava cada vez mais. Afinal, o último a chegar ficava ao sofá olhando a tela até dormir. Era uma forma velada de explicar porque não fora para cama.
Íamos aguentando. Ninguém dizia nada sobre a situação. O desconforto tinha quilos e o silêncio fuzilava. Sei que nos entrincheirávamos em trabalhos tediosos. E assim sucediam as batalhas travadas diariamente. Lutávamos como soldados rasos de uma guerra desconhecida. E muitas vezes sentíamos dúvida. Numa quinta-feira quase lhe escrevi uma carta de amor. Mas resisti tolamente como o soldado que combate sem propósito. Lutava contra alguém que conhecia tanto quanto sabia não ser meu inimigo. Eu e ela. Jamais fomos oponentes. Ela fazia questão de lençóis novos todos os dias e eu detestava arrumar a cama antes do sono. Essa era a órbita de nossas diferenças.
Bem, estávamos equivocados. Perdidos em uma batalha inútil. Um confronto furtado dos desencontros banais do nosso cotidiano que não permitia que esquecêssemos um tubo de pasta de dentes se fossemos a Itatiaia. Pensava assim enquanto voltava para casa num fim de tarde morno e iluminado. Pensava em uma trégua para que voltássemos a nos falar frente a frente. Mas ela entenderia? Eu queria um armistício, contudo a covardia sombreava meus gestos.
Vim andando devagar. Depois da esquina tudo era praticamente a vista do nosso sobrado. Ergui os olhos e vi. Pendurado, esvoaçando pela abertura da janela, dormia um grande lençol branco.
Tive certeza. Era uma mensagem de paz.
Corri. Subi as escadas aos saltos. E quando abri a porta ela me olhou tão esbaforida quanto eu. Respiramos um o sentimento do outro num beijo longo enquanto o lençol tremulava na janela. 


Rafael Alvarenga
Itatiaia, 09 de janeiro de 2015

sábado, 3 de janeiro de 2015

Divulguemos o ano novo

Divulguemos o ano novo

Hoje nós vamos comemorar que o ano já se tenha fixado na superfície terrestre. As pessoas já trabalham normalmente. As lojas vendem e os fregueses bocejam. Há quem não se lembre onde guardou o pedaço de papel onde pontuou promessas e mudanças. O caminhão de lixo levou as garrafas. Passou cedo hoje esse serviço. Tanto coisa esvaziada. As crianças sequer sentiram. Que lhes interessa um ano novo se todo ano que têm até agora é e continuará sendo novo também? Quanta inconveniência esses foguetes esse folguedo esses fogos! Artifício assustador! Dizem com todo corpo já que a boca ainda é a palma da mão de sua alma.
O ano é novo em todo esse calendário! Mas as pessoas continuam indo aos mesmos lugares. As máquinas ainda oferecem as mesmas panes e os sistemas elétricos também entram em curtos. Mas nós prometemos mais empenho e zelo. Ali no varal ocorreu um nó. Há quem desate? Hoje parece anteontem. Entretanto anteontem era ano passado. E nós todos prometemos mudanças. Que confusão! Confusão dos problemas. Os problemas é que são os problemas. Nós prometemos mudanças. Nós estamos dispostos a mudar. Contudo os problemas continuam. Permanecem urrando por resoluções continuas que ultrapassam os anos, que engolem calendários, soterram dias e noites. O problema deve ser os problemas que não compreendem que o ano é novo e que tudo deve ser realizado e resolvido no ano que já nasceu.

Rafael Alvarenga
Itatiaia, 02 de janeiro de 2015