sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Bom de bola

Bom de bola

Uma vez o menino pediu a mãe para jogar bola. Ela se fazendo de desentendida lhe respondeu: Mas você já está jogando, meu filho! E levou a mão à cabeça dele, saindo num passo mais ligeiro que o drible do bom de bola.
O menino e a parede eram adversários num jogo em que nada mais se disputava. Desses onde não há nem quem assista.
 A mãe voltava. E como um técnico mancomunado a sórdidos empresários, jamais punha o menino em campo. Do portão de casa ele, torturado, assistia os outros meninos no meio da rua de chão.
Pensou até em ser técnico no futuro. Afinal, observava acertadamente o posicionamento torto de cada jogador: esse grandalhão não ia bem pela lateral esquerda, tampouco aquele baixinho franzino segurava alguma coisa na retaguarda.
No coração da mãe nem um pingo de sobressalto. Olhos abatidos eram os do menino. Se a pelada fosse na outra rua dava para arriscar uma mentira por uma partida de dois gols. Mas ali na frente era impossível. Como era impossível, naquela idade, sonhar em ser técnico. Queria ser jogador, titular e fazedor de gol.
Marcou pontos na parede, e como se fossem alvos, mirava-os com a bola. Seus passes eram cada vez mais precisos. Dominava os fundamentos do futebol.
Um dia a mãe abriu o portão. O menino saiu a jogar e jogava tão bem que jamais voltou para a reserva de qualquer lugar. Em poucos anos transformou-se em craque de majestosas proporções.
Para muitos nascera com um dom extraordinário. Para ele era bem mais simples: questão de fundamento.

Rafael Alvarenga

Resende, 28 de fevereiro de 2014

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Coisas de uma tarde

Coisas de uma tarde

A tarde triste nos beiços de um trompete escandaloso nada tem de dourada. Embora sugira a cor de um metal frio o sol ainda explode. Anunciam-se nuvens por trás do solar em cima do morro. Nessa hora as escolas libertam crianças furiosas vestidas com feios uniformes pobres e cinzentos como as roupas amarrotadas dos homens que voltam dos velórios.
Eu queria uma forma estética para escrever de tudo nessa vida. Mas essa vida é muito rebelde. E tem tantos jeitos que até parece que é de qualquer jeito que se escreve.
E eu em agonia. Se ela não vem minha tarde sobra. É tanto tempo amontoado sobre espaço conjugado. Há pouco acendi um charuto. Estava na caixa fazia muito tempo. Por gentileza um amigo me presenteara. E até agora não soubera o que fazer com esse charuto. Fiz dele algo que somente me desagradasse com seu intenso tabaco concentrado em folhas longas. O tempo que levei buscando retirar esse sabor da carne mole de minha boca me fez esquecer um pouco que ela não vinha. O gosto ruim desse tabaco queimado me tirou a tristeza da tarde.
Mas não houve muito jeito. A tarde se desfazia ainda mais. E um azul fino entrava pela memória saudando saudades.
Começaram a tocar um piano. E as notas, como olhos piscando lágrimas, trouxeram a noite. Tudo recomeçava. O sol estava enfim enterrado. A noite era tempo de qualquer estrela.

Rafael Alvarenga

Resende, 23 de fevereiro de 2014