O relógio da cozinha
Fui ver a casa. Julgava necessário locar uma fatia
de teto. De modo que mantivesse abrigado o frágil Ulisses de papel de minha
coleção de heróis indefesos. Mas como é macambúzio entrar em casas vazias e
limpas. Pois se percebe que ali nada vive. Meus passos retumbando. Experimentei
meu corpo dentro das tripas vazias de uma fera empalhada.
Atribulado com sua comissão, um homem me tratava
pela alcunha de Sr. E ao longo dos cômodos me conduzia para adiante roçando a
pança roliça pelas paredes como se escondesse alguma falha.
A casa cauterizada. Precisava estar morta para
agradar um novo inquilino, pensavam. No entanto, na cozinha sobrara um relógio
na parede. Um relógio doente. No qual os ponteiros mal tinham forças para ultrapassar
o peso e a grossura do tempo. O relógio desamparado, sem alma. Seu corpo
lívido. Seus olhos numerados. Seu coração mal batia um surdo tic tac.
O corretor falava sobre os benefícios do imóvel e
andava. Imune a qualquer tipo de sensibilidade. Ao ver-me atento ao relógio desculpou-se
e, suando, avançou a mão ao que ainda sobrava vivo naquela casa. Numa manobra
cruel virou-o de costas e arrancou-lhe a pilha como quem arranca o coração
ainda vivo, ainda quente, do último vivente de um antigo, e agora apagado,
bosque.
Não me senti cúmplice. Em todo caso, nunca mais
quis ver nenhum deles novamente.
Rafael Alvarenga
Cabo Frio, 06 de janeiro de 2013
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