segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Mulher percebida


Mulher percebida

 A mulher vinha como quem vem e não é percebida. Porque simplesmente vinha como quem vem. Vestia preto. Os cabelos alisados artificialmente como o das muitas outras mulheres que vem.
É assim. Quando olhamos para um monte de pedrinhas de brita juntas, não vemos uma pedrinha. Vemos o monte de pedrinhas de brita juntas. Por isso ninguém via a mulher. Porque ela vinha como quem vem. Em meio a outras tantas pessoas semelhantes, vindo.
Eu mesmo posso dizer que nunca vira aquela mulher que vinha a minha frente. Nem quando alcançamos a faixa de pedestres; quando juntamo-nos feito montanha de gente. Onde gente mesmo ninguém vê, mas montanha de gente eis aos olhos de todos.
E foi tão rápido quando tudo aconteceu. Tão rápido que não conheço unidade de marcação de tempo adequada para empregar agora. Ocorreu que a mulher de preto, aquela que vinha como quem vem e não é percebida, caiu.
Tombou no chão. E sem dizer nada, sem olhar nada, talvez até sem ouvir nada – quem sabe? Ela não precisou nem vir mais. Porque todos a perceberam. Ela destacara-se da multidão que vinha.
Perceberam os ramos de rosas tatuados em sua coxa esquerda. Seu anel encardido cravejado por uma pedra verde. Perceberam que a pedra era falsa também. Perceberam que as raízes de seus cabelos negros e alisados estavam brancas. Perceberam seus longos pés de galinha. E como estava de saia perceberam até sua calcinha. Branca com desenhos mal executados de aves coloridas e extintas.

 Rafael Alvarenga
Cabo Frio, 16 de agosto de 2012

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Crônica


Crônica

De dentro de mim retiro coisas que não posso ver. Sinto apenas que estão fugindo. Preparo-me. Cerco essas coisas invisíveis e a cada uma delas aplico substantivos, adjetivos, pronomes, numerais, verbos e preposições. É como se eu vestisse cada uma dessas coisas invisíveis com uma roupa visível, legivelmente caligrafada.
E elas se atemorizam quando caem nessa minha arapuca. Sabem não adiantar correr. Porque estão como quadrúpedes laçados pelo vaqueiro. Em seguida, arrumo todas essas coisas invisíveis, ora visíveis, pois vestidas com uma espécie de roupa apalavrada, em um curral de linhas.
Assim é a lida. Até as coisas irem rareando e findarem-se.
Então o cronista crê nunca mais poder escrever novamente. Acredita-se vazio. E não adianta olhar para os lados. Ele sabe não poder copiar. Nesse instante, acha-se mudo, surdo, tetraplégico e solitário. Extremamente solitário, porque nem dentro de si há alguma coisa.
Eu chego a pensar haver ainda dentro de mim muitos litros dessas coisas quais não posso ver. Entretanto quando elas não fogem, eu, prontamente, nego-lhes a existência. A rebeldia do que sinto é o sumo daquilo que escrevo. Se todas essas coisas invisíveis pacificam-se, domesticam-se, de súbito, definham-se.
Ah, o cronista permanece tal como depois do amor, depois do apetite: saciado. No entanto guarda uma fé orgânica de que, dentro em pouco, tudo acontecerá novamente.

Rafael Alvarenga
Cabo Frio, 18 de maio de 2012

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Nepotismo


Nepotismo

Na minha infância a palavra mais ouvida e menos entendida era nepotismo. Eu não via nunca o tal do nepotismo; percebia apenas as situações diversas onde meu pai afirmava encontrá-lo.
 Por exemplo, eu e meu amigo Frank íamos sempre à sorveteria. Um dia reclamei, na mesa de jantar, que a dona Joelma, proprietária do estabelecimento, punha para o Frank bolas de sorvete maiores. Papai disse ser esse um caso de nepotismo. Porque o Frank era afilhado da dona Joelma.
Depois o Getúlio, que até jogava dama e pescava com papai, deixou de frequentar nossa casa. Pelo que eu sabia, eles ainda trabalhavam juntos. Passou foi tempo até que eu tomasse conhecimento da promoção de Getúlio. Agora era chefe de papai. Depois disso meu pai dizia, na mesa de jantar, que a repartição pública era praticamente propriedade da família de Getúlio, tendo lá primos, tios e sei lá quais parentes mais. E essa coisa de nepotismo aparecia nesse caso também.
Às vezes, depois do jantar, papai ligava o rádio. Preferia-o à televisão. Numa sexta-feira abafada, onde ninguém saía, pois todos tinham a certeza do toró iminente, sua estação preferida fazia um programa especial para o Zezinho. O filho do cantor Zezão. Meu pai, por sua vez, gostava do Bernardo Alves, um cantor órfão. Por isso bradava: Nepotismo até no rádio!
Todavia foi na noite seguinte quando resolvi aquela confusão. Passei raspando na prova de matemática. Sorte foi a professora ter considerado muitas coisas não colocadas no papel. Na sala de aula, fui o último a receber a prova com o cinco escrito em azul. Quando me estendeu a folha e o sorriso, mamãe me disse: Eu te conheço muito bem. Sei que você sabe. E que é bom menino.
Fomos juntos para casa e mamãe fez guisado de frango com batata e cenoura. Papai me parabenizou pela aprovação e comeu satisfeito. Ao fim do jantar resolvi perguntá-lo o que era nepotismo. É quando alguém faz algo ruim. Respondeu-me depois de um silêncio longo, esforçando-se para não dar exemplos.
Em seguida, comi o doce de mamão da sobremesa e dormi leve. Tive a certeza que mamãe ter me passado não era nepotismo. Porque não era coisa ruim. No entanto a promoção de Getúlio, o programa especial para o Zezinho e principalmente as enormes bolas de sorvete dadas ao Frank pela dona Joelma, isso sim eram coisas ruins! Isso sim era nepotismo!

Rafael Alvarenga
Cabo Frio, 01 de maio de 2012

sábado, 19 de janeiro de 2013

Apenas uma crônica


Apenas uma crônica

Agora faz um tempo brando. Falta o ribombar de uma tempestade de belezas. A música desse trompete dourado é materna. E o silêncio do resto da noite nem pisca. Está vidrado em meu descuido. Eu quis janelas todas de vidro. E puseram por fora uma grade barriguda de cor argentina.
Hoje pela tarde um homem dispensava uma enciclopédia. Eu carreguei esses livros até aqui. E ninguém acredita que o tenha feito sozinho. Tal a quantidade e o peso incalculável dessas pedras. Eu os trouxe pelas trilhas da avenida. E agora faço em meu quarto a pirâmide que sempre desejei. Sou apenas um escravo. Como eram aqueles egípcios, maias, astecas. Nada levará meu nome. Nenhum reino será dedicado a mim.
Devo prever algum eclipse. É um sol pontudo que passará pelo buraco do acento esquecido. Mas agora é lua ainda. Preciso escrever logo. E em seguida desmanchar minha pirâmide. E esconder as pedras. Ninguém pode ver meu ritual. Diriam que sou atormentado demais. Não leriam minhas crônicas. E de que viveria eu, senão da rabugice de seus olhos desdenhosos com olheiras bistres?
Vou continuar. Puxo um volume. É o número cinco da enciclopédia cuja vida eu acabo de salvar. Abre-se uma passagem. Entretanto não há nenhum mistério! Meu deus, quando é que vão entender isso? Quando é que vão entender que isso que faço é apenas uma crônica?

Rafael Alvarenga
Resende, 18 de outubro de 2012

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Neblina baixa


Neblina baixa

Fui acordado pelo frio. E como não havia mais cobertor para puxar, o sono ficava comprometido. Levantei, sentei uma leiteira d’água sobre o fogo. E bocejei um hálito guardado a sete sonhos. Assim que a água virou café, o galo cantou. De modo que os vizinhos até mudaram de lado na cama. Mas não se levantaram. A neblina andando no quintal. Os pintos bicando as acerolas caídas no chão.
Meu café na caneca. Quente feito um cobertor de lã. Ali na frente, na construção, o trato da empreitada trazia os pedreiros mais cedo. Baldes de massa içados por cordas e roldanas; tijolos lançados para a laje; carrinhos de areia; sacos de cimento; água gelada; pá cheia de brita.
Na laje, soerguendo o peso de caibros e telhas, o homem calculava e suava. E sua quentura esburacava a neblina. Seu trabalho sonorizava a manhã cantando de galo por obrigação. O lápis atrás da orelha e a conta sussurrada em números invisíveis.
Quando a mão, revestida pela camisa, alcançou o rosto a fim de secá-lo, ainda não se via sol, vestido que estava pela névoa. No entanto, sabiam eles que esse não seria dia de nuvem. A neblina baixa era apenas o prenuncio de um sol, de um sol que quando chega, racha.

Rafael Alvarenga
Resende, 29 de novembro de 2012

domingo, 13 de janeiro de 2013

O relógio da cozinha


O relógio da cozinha

Fui ver a casa. Julgava necessário locar uma fatia de teto. De modo que mantivesse abrigado o frágil Ulisses de papel de minha coleção de heróis indefesos. Mas como é macambúzio entrar em casas vazias e limpas. Pois se percebe que ali nada vive. Meus passos retumbando. Experimentei meu corpo dentro das tripas vazias de uma fera empalhada.
Atribulado com sua comissão, um homem me tratava pela alcunha de Sr. E ao longo dos cômodos me conduzia para adiante roçando a pança roliça pelas paredes como se escondesse alguma falha.
A casa cauterizada. Precisava estar morta para agradar um novo inquilino, pensavam. No entanto, na cozinha sobrara um relógio na parede. Um relógio doente. No qual os ponteiros mal tinham forças para ultrapassar o peso e a grossura do tempo. O relógio desamparado, sem alma. Seu corpo lívido. Seus olhos numerados. Seu coração mal batia um surdo tic tac.
O corretor falava sobre os benefícios do imóvel e andava. Imune a qualquer tipo de sensibilidade. Ao ver-me atento ao relógio desculpou-se e, suando, avançou a mão ao que ainda sobrava vivo naquela casa. Numa manobra cruel virou-o de costas e arrancou-lhe a pilha como quem arranca o coração ainda vivo, ainda quente, do último vivente de um antigo, e agora apagado, bosque.
Não me senti cúmplice. Em todo caso, nunca mais quis ver nenhum deles novamente.

Rafael Alvarenga
Cabo Frio, 06 de janeiro de 2013

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Moça bonita mergulha


Moça bonita mergulha

Pela areia iam todos. Depois vinham todos. Quanto mais caminhavam mais sedentos do mergulho ficavam. O mar ali, deitado, respirando leve. Do outro lado a placa: Impróprio ao banho.
Não havia quem se arriscasse. Por que temessem menos as bactérias d’água que os olhares reprovadores; as suspiradas cheias de nojo; os comentários baixos, de lábios lentos, que facilmente se podiam ler. Seria como mergulhar no lodo. Tudo bem, um lodo hoje bastante peculiar, pois azul.
A moça bonita, descansando da corrida na areia, colocou-se dentro do biquíni. O que naturalmente chamou muita atenção, por que quanta moça bonita ficara então para fora do biquíni. E mesmo que fingissem desinteresse, ficavam todos a espera do que faria a moça bonita. Mas ela esperou. Ajustou as laterais do traje. Conferiu se a bolsa estava bem trancada.
Em seguida caminhou para a água. Molhou pés e mãos. Refrescou a nuca, os punhos, os rins. Ninguém acreditava. Entretanto era isso sim. A moça bonita num mergulho agudo furou o mar. Dentro d’água mergulhava erguendo a bunda. Nadava solta. Espalhava água. Borbulhava.
Na areia todos com calor, inveja e covardia. Sentiam-se feios demais, ou velhos demais, ou sensíveis demais para mergulhar no mar azul. Mas e a placa?, perguntavam-se.
Moça bonita saiu do mar mais bonita do que entrara.
Já as mães, antes que as crianças pedissem o mergulho, levantaram acampamento gritando que já era hora de almoço. Foram todos. E as crianças choravam o mais alto que podiam.

Rafael Alvarenga
Niterói, 12 de novembro de 2012

domingo, 6 de janeiro de 2013

Momento crônica


Momento crônica

Esperei todos adormecerem. Então, envolto por sonhos alheios e além-mundos, dei início à crônica. Porque precisava de mistério e insegurança; precisava não ter chão sob os pés, nem analgésicos nos atos musculares.
Saí ao jardim. Matei seis flores. Em seguida lhes ofereci todo um jarro d’água para beber. E como ficaram bem! Mortas de pé no meio da mesa. Despossuídas das obscenidades quais lhes garantem pétalas abertas. Zangões papiloscopistas apenas observavam profissionalmente.
Percebo marimbondos entrando aos casais pela porta da frente. Vasculham as quinas da sala. Avaliam as condições de minha moradia. Vejo-os acertando detalhes acerca do posicionamento de sua habitação. Enquanto isso latejam suas bundas avermelhadas e inchadas. Pululam seus ferrões na direção de meus dedos. À eles sou insignificante. Assim como são insignificantes minhas escrituras de posse e outros documentos legítimos lavrados em cartório. Ademais, alavanca sua prepotência o fato das mulheres, à simples vista dos marimbondos, saírem afoitas e histéricas a fim de protegerem as crianças. É que em suas existências sem memória jamais viveram guerras, jamais viveram pestes, jamais viveram fomes essas nossas mulheres fortes.
No entanto alguém acorda. É agora meio da noite. E quer um copo d’água. Na cozinha as mangas escorrem um calor doce e podre. Mas eu, que posso eu fazer se mal consigo dar alguns passos longe da previsão do corrimão.

Rafael Alvarenga
Cabo Frio, 01 de janeiro de 2013

quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Jornal Velho


Jornal velho

Na capa dos jornais que leio registram o número de outro apartamento. Mas eu sou um homem medroso. Portanto não pensem que lhe assalto o periódico. Meu vizinho acumula uma pilha e deposita-a na escada, ao lado da lixeira.
Fico matutando sobre o estereótipo de meu vizinho. Não chego a um consenso comigo mesmo. Sei quais são as colunas que ele eventualmente recorta. E desconfio da matéria formidável que teria saído em algum caderno em alguma data, justamente porque ele não lhe abandonara no lixo.
Em certas ocasiões leio um artigo e percebo como uma página do jornal está mais amassada que as outras. Nitidamente os maus tratos ao papel representam maior interesse no assunto tratado. Via de regra é caso polêmico. Curiosidade magnífica. Aí dá vontade de sair pelo corredor. Bater à porta de meu vizinho e, cumprimentando-o como a um amigo íntimo, ser convidado para um drink e um dedo de prosa. No entanto, eu já disse acima que sou um homem medroso. E aos homens medrosos, às vezes, mal resta escrever estórias numa tarde quando parece que vai chover.
Por minha vez, com o jornal em mãos, faço alguns recortes, amasso mais algumas partes, pois até as releio, guardo alguns cadernos e pronto. Em seguida jogo fora o jornal que só foi meu porque envelheceu.

Rafael Alvarenga
Niterói, 15 de dezembro de 2012