O Calor de Laura
O frio
estacionava a manhã na colorida estação de primavera. Todo e qualquer movimento
era sutil. O próprio barulho parecia um chiado vindo pedir silêncio. O frio era
azul. Um azul desbotado, aos poucos se desgarrando do céu. Ou que talvez fosse
expulso daquele céu tão azul, tão certo de sua cor exuberante e sem mistura.
Isso, o frio era o azul pálido pelo céu despejado sobre a terra, por
compreendê-lo como outro azul. Por isso, agasalhar-se era fundamental.
Percebiam-se mangas desabrochadas sobre os braços das camélias. Blusas, calças,
suéteres, capotes, gorros, casacos rechonchudos, botões fechando colarinhos e
até mesmo braços cruzados eram usados. Quase ninguém se esquecia de aquecer-se.
Mas para Laura esse era o momento de ser vista.
Saía de
casa com um pequeno short de lycra, chinelos e uma camiseta; segurava, numa das
mãos, o cabo preso à coleira do cachorro. De início não lhe agradava o frio.
Contudo os olhares dos transeuntes apreciavam sua coragem e a estimulavam. Nas
pernas brancas, rachadas pelo frio, donde escorria o calor dos vasos sanguíneos,
anunciava-se, como letras em néon sobre uma placa, a alegre loja de portas
abertas. Os homens olhavam e como no frio o movimento perde um pouco de
movimento, os olhos demoravam-se naquelas pernas antes de saltar para outro
lugar. O sono e o frio paralisavam os olhos tão interessados em estar
paralisados e fechados. Para Laura isso não importava. Eles a ambicionavam como
ela sempre quis. Isso era o que importava. Queria sentir-se cobiçada. Ter
muitos olhos olhando-a com vontade de possuí-la. Sorria com o canto da boca e
excitava-se com a cobiça alheia.
Imaginava
todos ao seu redor despindo-a com toda a força necessária para rasgar em
pedaços aquele short. Diria até que não poderia fazer aquilo ali na calçada,
insinuaria um não gemido, lançaria os beiços úmidos para fora da boca, tiraria
uma mão grossa de cima do bico arrepiado do seio pequeno, todavia, de qualquer
modo, se entregaria rápido sucumbindo ao tesão que o tempo, quando não atrofia,
acumula.
Seus lisos
e ralos cabelos não acortinavam a nuca, subitamente lambida pelo vento frio e
bruto que também lhe arrepiava os parcos pelos louros do braço fino. Não
interessava onde era a padaria, enquanto fosse observada andaria molhada. Sentia
um prazeroso calor que nenhum casaco lhe teria dado. Um calor vindo de dentro. Algo
capaz de lambê-la em labaredas ardentes até o peito. Capaz de elevar-se à boca
traduzido numa ordem: Eu quero agora! Queria escolher algum daqueles pares de
olhos e levá-los com todos os acessórios embutidos na imagem sedenta por eles
transmitida. Laura sentia trazer os olhos dos homens nas coxas finas. Admiravam
e queriam suas pernas, se espantavam com sua coragem perante o azul frio e
desbotado despencando do azul puro lá de cima. Parou no sinal. Abriu um pouco a
base dos pés empinou-se o suficiente e abaixou-se para acarinhar o cachorro. Era
observada, tinha certeza.
Todas as
outras mulheres estavam encapotadas e por mais que fossem mais belas, não
provocavam a libido masculina como ela agora. Sentiu-se maravilhosa, preferida!
Percebeu alguns homens andando atrás de si pelo puro e primitivo desejo de
vê-la. Com o indicador e o polegar em forma de pinça, retirou das nádegas a
tira de calcinha fina e quente: instrumento imprescindível para Laura, a
libertina da manhã. Provocou e ouviu alguma piada. Adorou, apenas não olhou
para trás. Escutou mais comentários e sussurrou para os seus próprios ouvidos:
Aaahhh!!! Enquanto deliciava-se com o apetite alheio andava sem rumo. Atravessava
sinais, cruzava calçadas, caminhava esbelta e leve pelo bairro. Não pedia
licença, abriam passagem para Laura. Todos de olhos cravados naquelas pernas
brancas e aquecidas. Um par de pernas suculentas, finas e únicas; não havia
outras além daquelas.
No entanto
para Laura era uma pena já ser primavera. O frio não ultrapassaria o início da
manhã. O calor do dia nascia. Pássaros cantavam em alvoroço fora dos ninhos
quentes. Pessoas carregavam caixas e sentiam calor; outras pedalavam bicicletas
cheias de mercadorias; outras passavam já distraídas com a blusa nas mãos. As
primeiras garrafas de líquido fresco começavam a ser vendidas nas lanchonetes.
Por fim, apareciam nas calçadas mulheres e pernas e bustos e rostos e costas e
lábios.
Iam para as
academias com seus shorts de lycra a tornear sensualmente as curvas carnudas.
Vestiam tops os quais menos escondiam
e mais chamavam a atenção pelo tamanho. Mantinham rabos de cavalo para
apresentar a nuca ainda amassada pelo sono. Entravam em padarias, atravessavam
ruas, olhavam vitrines, iam à praia abusando do rebolado. As pernas fartas, a
barriga contida. Era o fim. Agora Laura não era mais a sensação das calçadas. A
concorrência lhe roubava violentamente os olhares. Ela própria agora, as olhava
como se fosse um deles; um daqueles animais
lambendo os beiços enquanto apreciavam.
Sentiu-se
descartada. Não havia mais nem uma migalha de olhar, de desejo... Tudo era agora
para elas, as outras. Teve raiva delas. Entretanto não podia fazer nada.
Sentou num
banco, pensou um pouco. Ninguém a olhava. Lembrou-se dos momentos da manhã
deliciosa enquanto semeava a volúpia alheia. Entrou na padaria comprou uma
bisnaga e voltou para casa.
Amanhã
acordaria cedo, mais cedo, e sentiria por mais tempo aquele prazer tanto precisado.
Entrou no saguão do prédio e, durante a espera do elevador, olhou para trás.
Decepcionou-se. O porteiro não olhava para suas pernas. Enfim, subiu com a
bisnaga e esperou ansiosa a manhã seguinte. Nunca mais passaria tanto tempo sem
ser desejada. Nunca mais desejaria dormir nas manhãs frias.
Rafael Alvarenga