sexta-feira, 7 de outubro de 2016

Histórias de contos de fada

Histórias de contos de fada

A menina ouve as histórias de contos de fada. Tem os olhos acesos e seus lábios se movem em silêncio embora queiram dizer o pensamento; entretanto como a atenção corre pontual por trás dos enredos que se desenrolam, as palavras não vazam. As palavras se contêm, se desmancham, se justapõem; mas ainda não vazam.
Daí a pouco, um virar de página, e a história oferece o monstro. Suas intenções duvidosas, sua pele asquerosa, seus olhos sem beleza. Tudo diz à menina o que ela deve dizer. Afinal, não se deve gostar dos monstros. Eles nasceram para ser repelidos e nas histórias dos contos de fada eles são maus por natureza, porque a natureza assim os teria feito.
A menina quer saber por quê. Porque a natureza fez o monstro? Tão difícil dizer alguma coisa. Pois a natureza não parece que fez o monstro. Porque quem fez o monstro, esse sim, fez também as histórias de contos de fada. Mas porque o homem teria feito o monstro? Sinto-me como o pai da Mafalda em desespero por causa de uma pergunta curta feita com os olhos mirando dentro dos olhos.
Digo que não sei. Continuo a história, porém dessa vez as palavras da menina vazam e ela busca me confortar. Diz que se chegar um monstro aqui - feito por algum homem - ela o irá bater com o bambolê na cabeça. E em seguir ordenará que aqui não podem entrar monstros feios e chatos.
Dou um sorriso e como meu rosto relaxa, ela me diz por fim: Não se preocupe papai, não deixarei que nenhum monstro entre aqui. Pode continuar lendo a história sem medo.
Eu acredito nela. E continuo a leitura.

Rafael Alvarenga

Itatiaia, 29 de setembro de 2016

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Onde está a liberdade?



Nasceu peixe e por isso tudo o que fazia era peixisse. No início da vida nenhum incômodo lhe abatia. Escamas amarelas reluzindo feito ouro unidas à força da juventude o confundiam a um raio percorrendo o fundo do mar. E não havia quem não se impressionasse: peixes, crustáceos e seres humanos se encantavam até com o movimento das guelras.
Mas foi como sempre foi. Nasceu peixe. E quando miúdo nadava pelas cercanias de pedras e corais. Não por temor, é que a sobrevivência valia qualquer coisa, inclusive passar por covarde. No entanto vamos pular essa parte. Pois o peixe cresceu como peixe e aos poucos percebeu que ainda que fosse mais rápido e bonito era um peixe como todos os outros. E de nada adiantaria o querer, pois não podia fazer nada que não estivesse dentro das opções de peixisse do seu indicador de peixe. E como aquilo lhe massacrava a carne foi em busca de saber se todos eram assim.
Não demorou para descobrir que siri só fazia coisas de siri; que anêmona só fazia coisas de anêmona; que plâncton só fazia coisas de plâncton e que também os tubarões só faziam coisas de tubarões. Ninguém no fundo do mar podia, tampouco conseguia ou precisava, fazer coisas que não fossem coisas suas. Descobriu que não havia liberdade. Ora uma palavra tanto usada mesmo no fundo do mar. Pensou em fazer uma grande reunião e explicar a todos que ali viviam sobre a inexistência dessa coisa tão querida chamada liberdade. Porém aquilo o inquietava. Não era possível! Devia haver liberdade em algum lugar.
Pensou em peixe voador, mas logo descobriu que eles só podiam viver daquela maneira de peixe voador. Pensou até em maré vermelha, para rapidamente perceber que ela não poderia ser de outra cor. As coisas são como são e não há forma de não serem assim.
Ah! Resolveu estudar a vida dos pássaros. Talvez não houvesse liberdade apenas no mar. Coitados dos seres marinhos! Entretanto percebeu que o problema não estava circunscrito à água. Quase foi levado pelo bico por um mergulhão. Era assim com eles também. Um mergulhão não podia fazer como faz uma tartaruga. O problema era geral. Realmente não havia essa coisa chamada liberdade.
Foi o peixe nadando tristonho com intuito de convocar a reunião. Todavia, antes que o fizesse, lembrou-se de um último animal ainda não observado. Era o Homem. E começou a pontuar: Ele é o único que pode voar, mergulhar, comer carne ou não... é o único que pode fazer novas regras e repensar seu modo de ser humano.
Tanto aquela ideia o alegrou que girou as nadadeiras em alta velocidade a fim de convocar a reunião para dar uma boa notícia. Foi quando deu de cara com um amontoado de lixo. Produção humana; uma espécie livre que pode fazer diferente, mas não faz.


quinta-feira, 25 de agosto de 2016

A ventania que passou por aqui

A ventania que passou por aqui



Ontem foi uma ventania de espantar. As pessoas saíram aos quintais e rapidamente deixaram nus os varais. Depois os homens mais fortes fecharam portas e janelas e se mantiveram protegidos e aquecidos dentro de suas casas, já que lá fora o vento uivava num tom de lobo mal.
Não demorou e a pane completa da energia elétrica deixou a todos ainda mais indefesos. Nesses tempos de avanço a falta da televisão e do chuveiro elétrico deixou o ser humano diante da constrangedora tarefa de conversar com quem está sempre ali adiante. Mas veio a necessidade salvadora de procurar e acender as velas e a tarefa distraiu os viventes, embora as sombras os deixassem temerosos mediante a lembrança de um passado trevoso e medieval.
Da cumeeira a ventaria arrancou telhas que ao encontrarem o chão produziam um som apocalíptico. Das árvores arrancou as últimas folhas, deixando os galhos apontados como chifres no clarão dos raios. Das pessoas arrancou as mais ancestrais superstições quanto a espelhos, objetos de metal e ateísmos. Do poeta arrancou a insossa mansidão do dia inteiro sem poesia; que alimentava como pão sem manteiga.
Restava a esperança de que a ventania iria passar. Porque talvez somente o ser humano tenha esperanças de que as coisas passem um dia. Porém a ventania era cumprida como um trem que puxa muitos vagões carregados. Um trem que demora a passar e que apita dizendo: Atenção, deem passagem, não posso simplesmente frear. Não posso simplesmente pedir com gentileza. Pois isso não é da natureza dos trens de carga, tampouco das ventanias.

Rafael Alvarenga
Itatiaia, 25 de agosto de 2016


quinta-feira, 9 de junho de 2016

Eletroencefalograma do futebol brasileiro

Eletroencefalograma do futebol brasileiro

O Corinthians até ontem era um telhado cheio de goteiras. Choveu o campeonato paulista, choveu a Libertadores. Mas Tite abriu a caixa de ferramentas e concertou tudo como se o fizesse em sua própria casa.
O Internacional mais uma vez vem. Mas de tanto chegar e não levar, já lhe vão perdendo o medo. Já seu vizinho, o Grêmio, é um milagreiro: basta-lhe um gol e aparecem três pontos.
O Palmeiras tem o Cuca que se declarou torcedor do porco desde menininho – disse depois de assinar o contrato. O Flamengo contratou a pior versão de Muricy Ramalho: a tranquila. E agora, já sem ela, tem um técnico interino que justifica derrotas dizendo que perdeu para um postulante ao título.
O São Paulo acha que ganhará a Libertadores. O Fluminense quer o divórcio com Fred, mas não sabe como dizê-lo para sair de casa. E a Chapecoense pode até ir bem, mas ninguém quer ver. O Santa Cruz já acordou do sonho. Ganhar a Série-A demora 38 rodadas e não quatro. A Ponte Preta luta para chegar no outro lado de lá sem cair. E o Santos continua revelando bons jogadores.
O Atlético-MG foi considerado favorito, mas foi perdendo aqui e ali, empatando acolá e até agora ganhou experiência. O Figueirense alcançará, no máximo, uma cota de TV para auxiliar nas despesas do dia a dia. Já o Vitória jura que seu lugar é bem ali: no meio da tabela.
Ao Coritiba falta coxa, peito, raça e vitórias. O Sport foi a preferência de Diego Souza. Tomara que não seja por causa da cachaça Pitú, muito apreciada por lá. O Atlético-PR gastou todas as suas forças para emagrecer o Walter.
O Cruzeiro vive uma crise tão grande que devia mudar a cor do uniforme: de azul pra cinza. O Botafogo treina a vida inteira pra correr os 100m rasos do campeonato carioca e agora se arrisca na maratona do Brasileirão: uma atitude suicida. E o América-MG é o coelho. Naturalmente não tem nada de predador, é presa.

Rafael Alvarenga

Itatiaia, 09 de junho de 2016

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Ser ou não ser: eis a questão do siri

Ser ou não ser: eis a questão do siri

Sequer era noite de lua. Mas o negrume grosso compensava qualquer ausência. Nada que deva remeter ao sombrio, ao macabro. Pois quanto mais verdadeiramente preto é o alto de uma noite, tanto mais diamantadas são as estrelas.
E foi em uma noite assim que o siri encontrou a tartaruga na areia. Um encontro cheio de surpresas para a tartaruga que, mesmo antes de ver o siri, ouviu seus gemidos. Procurou por algum tempo e eis que o avistou entanguido de suor:
̶  Amigo siri! Quanto tempo faz que não lhe vejo!
E o crustáceo, que ao ouvir o cumprimento aproveitara para descansar um instante, logo respondeu com entusiasmo: Querida tartaruga! A quantas nada por esse mar?
̶  Passei o ano seguindo as correntes, como sempre. Mas agora retorno para a desova. E você, o que merece tanto esforço? – perguntou a tartaruga ao perceber o siri ofegante.
̶  Ah, é difícil de explicar... – respondeu virando os olhos melancolicamente.
̶ Bem, me dê um instante e eu adivinho. – falou a tartaruga abrindo um sorriso iluminado antes de continuar: Aposto que é para ficar em forma... Tem uma siri nesta história?
̶  Não é nada disso.
̶  Como não? Estão está nesta loucura por quê?
̶  Sinceramente tartaruga – disse o siri encarando-a e ajeitando as patas na areia úmida – eu não quero mais andar de lado. Todo mundo anda pra frente. E eu não! Comigo é tudo de lado! Mas chega! Quero mudar!
Por um momento a tartaruga ficou sem palavras. No silêncio ouvia-se apenas o leve escorrer constante das ondas sobre a areia, como se marcassem o tempo.
̶  Mas siri, os siris são assim, eles andam de lado. Essa é a questão... – Falou por fim a tartaruga ao que o siri logo rebateu:
̶  Que questão? Você acha bonito me ver andando de lado?
̶  Claro! É a sua identidade, seu modo de ser, sua maneira de estar no mundo, enfim essas coisas filosóficas.
̶  Ok. Então você vai dizer que é legal andar de lado, que acha bacana e charmoso, mas que como você é tartaruga não pode andar assim, pois isso é coisa de siri, etc e tal.
̶  Mas qual é o problema? Afinal, isso é coisa de siri. E você é siri.
̶  Essa é a questão tartaruga: Eu quero ser o que eu quiser ser. Parece uma enrolação para dizer o óbvio, mas é por isso que estou suando aqui na areia.
̶  Quer dizer que você está fazendo esse esforço todo pra andar pra frente? Como todo mundo? Como eu? Mas e a sua essência de siri?
̶  Minha essência é um hábito ensinado a milhares de anos. Só isso. – E por fim, antes de sumir na escuridão, disse ainda o siri: Se minha essência for o que eu fizer de mim e para mim, serei siri mesmo que ande de frente. Enfim, se a essência é minha quem tem que construir sou eu.

 Rafael Alvarenga



segunda-feira, 21 de março de 2016

O poste e a Lua

O poste e a Lua

Corriqueiramente tenho um poste em frente à janela da sala. Ele: rígido, quase penitente. Mantem com continência militar o braço esticado na ponta do qual uma luz vermelha alcagueta os fios. À noite parecem que são muito mais do que deveriam. Pior: parecem a razão de ser de todo equilíbrio, de toda rigidez. Nessas horas o poste é um grande bêbado. E os fios os constrangimentos que fazem boa parte dos bêbados se manterem de pé.
Bem, mas hoje é lua cheia. E dela devo dizer também. Pois nasceu agora há pouco; na linha exata desse poste embriagado. E mesmo gorda e sem pés ou mãos, foi subindo e ganhando uma altura que nem o poste possuía. Pobre haste de concreto embriagada julgou que aquilo fosse alucinação causada pela bebida.
O poste piscou o olho. Esfregou-o. Não conseguia distinguir: havia a sua luz: vermelha e rodeada de insetos. Mas havia também outra: azul e rodeada de nuvens. Achou que era uma nova tecnologia implantada durante o dia, enquanto naturalmente, dormia. Não sabia se aquilo era verdade. Afinal, qual era a sua luz? Vermelha ou azul? Já a lua que nada tinha que ver com isso continuou subindo pelas costas do poste que enlouqueceu. E como solução fechou o olho. Loucura.
A rua ficou escura na minha janela. O poste insano, deprimido, caiu numa profunda crise de existência luminosa. No dia seguinte lhe virão com ajustes, apertos e estimulantes. Ora existe um padrão e poste nenhum pode se desvirtuar, dirá o rapaz de capacete assim que descer da escada.
Amanhã o poste voltará a funcionar. Mas hoje à noite eu abençoei sua cegueira – que só pela crônica é que vim saber ser loucura.

Rafael Alvarenga

Itatiaia, 21 de março de 2016  

segunda-feira, 14 de março de 2016

Sol

Sol

Abro as cortinas e o sol corre cego, galopante, potro. Tropeça nos objetos, esbarroa nas xícaras, roça nas páginas dos livros abertos que jamais terminarão de ser lidos. O sol fareja as cores das coisas. Investiga se já amanheceram. Se já deixaram seu noturno avesso. Pois não quer noite em lugar algum. E não há fundo de armário, embaixo de pia, dentro de baú que escape. Tudo será mostrado, revirado a coices. E se for preciso até mesmo curva a luz fará. Mas se a curva exigir muito espaço para vergar-se, e minha casa for assim tão pequena a ponto da manobra se desajeitar ela dará jeito. O sol tem músculos equinos. Procurará onde se possa refletir. E ainda que mais percorra que mais vá e volte em tão exíguo espaço chegará onde pretende. Há CDs, anéis, antenas de televisão, puxadores de armário, um espelho e o branco de uma parede. Tanto reflexo que até parece que o sol nasce no oeste. Tanto reflexo que o sol se empina. E não há homem que o amanse, só quem lhe põe cela e arreio é o preto velho da noite ou o cinza gordo e suado das nuvens. 

Rafael Alvarenga
Itatiaia, 17 de dezembro de 2015


quinta-feira, 3 de março de 2016

Pinga e range dentro da crônica

Pinga e range dentro da crônica

Dizem que preciso colocar óleo de máquinas nas dobradiças da porta da frente que insistem em ranger para anunciar a chegada de quem quer que chegue. E que também devo pedir emprestado ao meu vizinho a furadeira de marca alemã para instalar na parede lateral da área de serviço o conjunto de prateleiras que por ora dormem em pé feito cavalos brancos. Ah, e também dizem que a carrapeta da torneira da cozinha necessita ser trocada, porque o pinga pinga e a tensão pré-menstrual, uma vez misturados, resultam na invenção moderna da pólvora – que me desculpem os chineses, mas nesse momento seria intransigente respeitar tão fielmente a história das invenções.
E eu tenho um amigo que se orgulha em afirmar que na sua casa tudo funciona. Não há ventilador que não tenha três velocidades, chuveiro que não seja uma tromba d’água! Lembro-me do poeta Manoel de Barros que disse ter passado a vida fazendo inutilidades! E eu, o que faço afinal? Ele ainda fazia poesia. Mas e eu que ao tentar consertar uma maçaneta fico em dúvida se encontro motivo para a crônica. E quando encontro eis que outra coisa há de quebrar, desregular, entupir, arranhar, arriar, despregar. Se tento consertar não escrevo e se escrevo não conserto.
Mas confesso, não me fica nenhuma angústia. Se a porta range é por que chega alguém com uma história. E se a história deixa a porta continuar rangendo é porque o cronista vai contar o que sentiu. Pois nesse mundo ainda há aqueles que se orgulham de fazer certas inutilidades por motivos bobos.

Rafael Alvarenga

Itatiaia, 02 de março de 2016

domingo, 17 de janeiro de 2016

O Calor de Laura

O Calor de Laura

        
    O frio estacionava a manhã na colorida estação de primavera. Todo e qualquer movimento era sutil. O próprio barulho parecia um chiado vindo pedir silêncio. O frio era azul. Um azul desbotado, aos poucos se desgarrando do céu. Ou que talvez fosse expulso daquele céu tão azul, tão certo de sua cor exuberante e sem mistura. Isso, o frio era o azul pálido pelo céu despejado sobre a terra, por compreendê-lo como outro azul. Por isso, agasalhar-se era fundamental. Percebiam-se mangas desabrochadas sobre os braços das camélias. Blusas, calças, suéteres, capotes, gorros, casacos rechonchudos, botões fechando colarinhos e até mesmo braços cruzados eram usados. Quase ninguém se esquecia de aquecer-se. Mas para Laura esse era o momento de ser vista.
            Saía de casa com um pequeno short de lycra, chinelos e uma camiseta; segurava, numa das mãos, o cabo preso à coleira do cachorro. De início não lhe agradava o frio. Contudo os olhares dos transeuntes apreciavam sua coragem e a estimulavam. Nas pernas brancas, rachadas pelo frio, donde escorria o calor dos vasos sanguíneos, anunciava-se, como letras em néon sobre uma placa, a alegre loja de portas abertas. Os homens olhavam e como no frio o movimento perde um pouco de movimento, os olhos demoravam-se naquelas pernas antes de saltar para outro lugar. O sono e o frio paralisavam os olhos tão interessados em estar paralisados e fechados. Para Laura isso não importava. Eles a ambicionavam como ela sempre quis. Isso era o que importava. Queria sentir-se cobiçada. Ter muitos olhos olhando-a com vontade de possuí-la. Sorria com o canto da boca e excitava-se com a cobiça alheia.
            Imaginava todos ao seu redor despindo-a com toda a força necessária para rasgar em pedaços aquele short. Diria até que não poderia fazer aquilo ali na calçada, insinuaria um não gemido, lançaria os beiços úmidos para fora da boca, tiraria uma mão grossa de cima do bico arrepiado do seio pequeno, todavia, de qualquer modo, se entregaria rápido sucumbindo ao tesão que o tempo, quando não atrofia, acumula.
            Seus lisos e ralos cabelos não acortinavam a nuca, subitamente lambida pelo vento frio e bruto que também lhe arrepiava os parcos pelos louros do braço fino. Não interessava onde era a padaria, enquanto fosse observada andaria molhada. Sentia um prazeroso calor que nenhum casaco lhe teria dado. Um calor vindo de dentro. Algo capaz de lambê-la em labaredas ardentes até o peito. Capaz de elevar-se à boca traduzido numa ordem: Eu quero agora! Queria escolher algum daqueles pares de olhos e levá-los com todos os acessórios embutidos na imagem sedenta por eles transmitida. Laura sentia trazer os olhos dos homens nas coxas finas. Admiravam e queriam suas pernas, se espantavam com sua coragem perante o azul frio e desbotado despencando do azul puro lá de cima. Parou no sinal. Abriu um pouco a base dos pés empinou-se o suficiente e abaixou-se para acarinhar o cachorro. Era observada, tinha certeza.
            Todas as outras mulheres estavam encapotadas e por mais que fossem mais belas, não provocavam a libido masculina como ela agora. Sentiu-se maravilhosa, preferida! Percebeu alguns homens andando atrás de si pelo puro e primitivo desejo de vê-la. Com o indicador e o polegar em forma de pinça, retirou das nádegas a tira de calcinha fina e quente: instrumento imprescindível para Laura, a libertina da manhã. Provocou e ouviu alguma piada. Adorou, apenas não olhou para trás. Escutou mais comentários e sussurrou para os seus próprios ouvidos: Aaahhh!!! Enquanto deliciava-se com o apetite alheio andava sem rumo. Atravessava sinais, cruzava calçadas, caminhava esbelta e leve pelo bairro. Não pedia licença, abriam passagem para Laura. Todos de olhos cravados naquelas pernas brancas e aquecidas. Um par de pernas suculentas, finas e únicas; não havia outras além daquelas.
            No entanto para Laura era uma pena já ser primavera. O frio não ultrapassaria o início da manhã. O calor do dia nascia. Pássaros cantavam em alvoroço fora dos ninhos quentes. Pessoas carregavam caixas e sentiam calor; outras pedalavam bicicletas cheias de mercadorias; outras passavam já distraídas com a blusa nas mãos. As primeiras garrafas de líquido fresco começavam a ser vendidas nas lanchonetes. Por fim, apareciam nas calçadas mulheres e pernas e bustos e rostos e costas e lábios.
            Iam para as academias com seus shorts de lycra a tornear sensualmente as curvas carnudas. Vestiam tops os quais menos escondiam e mais chamavam a atenção pelo tamanho. Mantinham rabos de cavalo para apresentar a nuca ainda amassada pelo sono. Entravam em padarias, atravessavam ruas, olhavam vitrines, iam à praia abusando do rebolado. As pernas fartas, a barriga contida. Era o fim. Agora Laura não era mais a sensação das calçadas. A concorrência lhe roubava violentamente os olhares. Ela própria agora, as olhava como se fosse um deles; um daqueles animais lambendo os beiços enquanto apreciavam. 
            Sentiu-se descartada. Não havia mais nem uma migalha de olhar, de desejo... Tudo era agora para elas, as outras. Teve raiva delas. Entretanto não podia fazer nada.
            Sentou num banco, pensou um pouco. Ninguém a olhava. Lembrou-se dos momentos da manhã deliciosa enquanto semeava a volúpia alheia. Entrou na padaria comprou uma bisnaga e voltou para casa.
            Amanhã acordaria cedo, mais cedo, e sentiria por mais tempo aquele prazer tanto precisado. Entrou no saguão do prédio e, durante a espera do elevador, olhou para trás. Decepcionou-se. O porteiro não olhava para suas pernas. Enfim, subiu com a bisnaga e esperou ansiosa a manhã seguinte. Nunca mais passaria tanto tempo sem ser desejada. Nunca mais desejaria dormir nas manhãs frias.

Rafael Alvarenga


segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Flor no chão

Flor no chão

Achei uma flor
No chão.
Três pétalas lhe sobravam.
Pensei salvá-la.
De que?
Voltei pelo caminho procurando-lhe
os pedaços, mas não sabia o seu caminho,
Fui em direção a casa, jarro d’água em pensamento.
Desisti.
Que atrocidade teria desbeiçado a flor?
Indigna formiga faminta?
Famigerado vento que me refresca a face?
Indolente passarinho que me encanta o tempo?

Achei uma flor
No chão.
Pensei salvá-la.
Desisti.
Deixei que alimentasse a formiga
Que tremulasse ao vento – uma última vez –
Que fosse ninho ao passarinho.

Salvei-a de minhas próprias mãos pensantes.

Rafael Alvarenga
Itatiaia, 04 de julho de 2015