terça-feira, 30 de abril de 2013

Coisas e palavras


Coisas e palavras

Numa mão levo as palavras. Na outra as coisas. Fico de pé. Faço malabarismos circulares. Embaralho coisas e palavras. Engano. Abuso da confiança de vocês. Faço parecer que as palavras e as coisas sempre estiveram siamesas. Faço parecer que dividiram o mesmo útero primitivo.
Também quem vai me desmentir se as coisas jamais falaram. Então quem fala sou eu: A maçã está na fruteira. A fruteira é verde com flores azuis. E as formigas passeiam em busca do doce resto de banana que seca na base do cacho maduro já quase todo devorado. E o cheiro de bolo chega rolando pelo ar. O palito de fósforo penetrou-o para saber da secura de suas entranhas. Está no ponto. Sai brilhoso do forno. Abandona inteiriço a forma. A faca brilha. Em seguida mutila o primeiro pedaço.
Se tivesse apenas dois braços não conseguiria jogar tantas coisas e palavras. Nunca parei para contar quantos braços tenho. Ou quantas palavras ligo a quantas coisas. Às vezes repito, tudo bem. Mas não há quem se importe. Quem se importa com os nomes das coisas? Apenas quem cria os nomes das coisas.
Tenho nove braços. Um perdi brincando com palavras afiadas. Outro perdi quando palavras muito pesadas lhe caíram em cima. Outro à toa. Por risco bobo de palavra de fogo.

Rafael Alvarenga
Resende, 08 de abril de 2013 

sábado, 27 de abril de 2013

O dia em que perdi R$ 100,00


O dia em que perdi R$ 100,00

Hoje perdi R$ 100,00. E agora bem que eu gostaria de pensar em certa causalidade sobrenatural. Resignando-me pacientemente. Pois em algum momento futuro haveria de receber em dobro. Mas, sinceramente, não é possível tamanha fé diante da perda da nota.
E pensar que o volume de minha desolação seja tão frio e gigante como um Plutão. Em contrapartida, a felicidade daquele que a encontrou é luminosa e quente como um sol imensurável.
Agora me vem à mente todo tipo de arrependimento. Poderia não ter saído. Poderia ter conferido a costura do bolso. Poderia tê-la levado na mão. Em segurança. Contudo, não passa pela minha cabeça jamais tê-la possuído.
Desesperado retorno pelo caminho. Olho debaixo de carros; acompanho a curva do vento, porque acredito que a nota pode ainda, ultraleve, plainar sobre o ar. Desesperado interpelo os passantes. Será que não viram pela via pública uma nota nova de R$ 100,00? É que ela é minha.
Em instantes enlouqueço. Qualquer sorriso é suspeito. Pela porta do mercado sai um homem com muitos embrulhos. Talvez R$100,00 em mercadorias. Em bobagens jamais compradas com o salário suado de cada mês. Porém com uma nota de R$ 100,00 achada no chão, sim.
Agora só o tempo me fará lembrar sem dor. Porque dói perder R$ 100,00. Um dia falarei dessa perda sem muito desatino. Fazendo do caso estória para contar quando o assunto for dinheiro. Mas hoje não. Hoje prefiro ficar em silêncio. Por que hoje foi o dia em que perdi R$ 100,00.
Rafael Alvarenga
Resende, 25 de abril de 2013

domingo, 21 de abril de 2013

Chuva na cidade

Chuva na cidade

Fui na chuva mesmo. Mas encurtei o passo. De modo que coubesse sob o guarda-chuva. Aos poucos descuidei dos calcanhares. E por eles principiou meu alagamento.
Os pingos faziam as poças borbulharem. Não havia sequer perspectiva de estiagem. E também não havia quem se preocupasse comigo.
As cidades não foram projetadas para os dias de chuva. Pois empoçam a frente dos pontos de ônibus. E se encolhem. Marquises curtas. Chão torto. Mas as folhas das árvores tilintantes! Lavadas e verdadeiramente verdes.
Votei na chuva. O passo relaxado. O guarda-chuva dobrado. De modo que coubesse dentro da mão pelo cumprido. Os pés corajosos vasculhando as poças. Lá também meu retrato. Uma expressão desfigurada. Tentando sorrir. Tentando encontrar algum encanto.
Cuspiam no chão as árvores. Zombando de minha condição. Batiam os galhos. Tais bêbados recostados num balcão. Ficavam ali plantadas. Falando de coisas que se iam esquecer nas ventanias fortes da ressaca.
 A cidade então ficava obesa. E lenta. Pois as cidades não foram projetadas para os dias de chuva. É que os urbanistas e paisagistas e arquitetos e engenheiros civis nunca pensaram que pudesse haver chuva na cidade. Que pudesse haver água. Desse tipo que cai sem escorrer por tubos e torneiras. Desse tipo que não se controla nem por orações.
Cheguei na chuva. E minha casa seca, séria, sóbria. Não tinha nenhuma beleza que me consolasse.

Rafael Alvarenga
Resende, 08 de abril de 2013

quarta-feira, 17 de abril de 2013

Esse poeta


Esse poeta

Dou oferendas a quem concedera voz a esse poeta.  Faz tempo ele estacionou aqui ao meu lado. E como é volumoso seu corpo. Tem mais de mil páginas. E como falam suas páginas. Falam como mais de mil línguas. Em cada qual centenas de palavras. Em cada palavra incontáveis significados.
Fala de tantos lugares, esse poeta. Foi onde não se precisava de pernas. Caminhou onde não se precisava de chão. E está longe de ser algum santo esse poeta, graças a Deus!
Fala dia e noite esse poeta. E só morreu porque vestia paletó, calçava sapatos, bebia cerveja e comia feijão. Porque todos que vestem paletó, calçam sapatos, bebem cerveja e comem feijão morrem. Mas então como continua falando esse poeta? É que quem fala é a poesia. E a poesia não se veste, não se calça, não se bebe, não come. Por isso a poesia não se morre.
E como cabe o mundo em um verso seu. Tantos versos. Acho que existem muitos mundos. Pelo menos o poeta fala deles.
Se esse poeta se calasse quanta subtração contaríamos! Quantos mundos a menos então seriam? E nós? Todos nós. Caberíamos em tão poucos mundos? Nós e nossa bagagem. Nossos aborrecimentos, certezas, vontades, ilusões. Quanta bagagem! Quanto mundo faltaria se esse poeta se calasse!

Rafael Alvarenga
Resende, 30 de março de 2013

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Meu trabalho


Meu trabalho

Meu trabalho não constrói casas. Não pinta paredes. Não limpa banheiros. Não faz bolo de banana. Não lava a louça. Não vasculha as teias de aranha nos cantos altos das paredes. Não varre a casa. E mesmo se varresse não levantaria os tapetes para fazê-lo bem feito. Não entrega cartas. Não hasteia bandeiras. Não arma bombas.
Meu trabalho não troca as lâmpadas que estão queimadas. Não colhe flores do campo para enfeitar a jarra de alça branca sobre a mesa. Não atende ao telefone. Não maqueia defuntos. Não lava roupa. Não dirige automóvel. Não recolhe o lixo. Não dá nenhuma ordem.
Meu trabalho não vende sapatos. Não concerta máquinas enguiçadas. Não instala TV a cabo. Não limpa a acém. Não moe a acém. Não faz abortos. Não lavra escrituras. Não certifica óbitos. Não faz pães e rocamboles. Não planta fruta alguma, verdura alguma, legume algum. Meu trabalho não carrega caixotes. Não desvia fortunas. Não condena.
Meu trabalho não cura doenças. Não planeja pontes e aeroportos. Não ensina nada a ninguém. Não informa sobre o que ocorre na política. Não vende perfumes. Não atira. Não transa. Não borda uma toalha. Não reclama. Não desentope pias ou ralos.
Meu trabalho não é remédio. Não é terapia. Não é necessidade. Não é a ajuda, nem é milagre. Meu trabalho não tem nada de divino, místico ou trágico.
Meu trabalho não é nada disso que você está pensando.

Rafael Alvarenga
Resende, 30 de março de 2013

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Se escrevo


Se escrevo

Como pode ser aqui que escrevo? Se mal posso acender a luz. Se mal há espaço sobre a mesa para uma folha de papel em branco. Sim, para uma virgem e branca folha de papel.
Como pode ser aqui que escrevo? Se cada letra traçada solta gritos. Se cada pensamento estala as ferraduras ao cavalgar por essa cabeça miúda em forma de curral. Se ao olhar para os lados lanço chamas.
Como pode ser aqui que escrevo? Se na sala há uma cama. Se no quarto há uma mesa. Se o cômodo é único e o espaço é coletivo.
Como pode ser aqui que escrevo? Se mal posso beber um café a hora desejada. Se o sabor de qualquer torrão vai impregnar almofadas e pijamas. Se mal posso abrir a porta, convidar a lua e antes de lhe falar pigarrear para limpar a garganta.
Como pode ser aqui que escrevo? Se mal posso ler uma poesia em voz alta. Se não posso falar mal de ninguém, pela razão de não poder falar nada. Ah, se o silêncio me doesse! Estaria agora aos berros a procura de um analgésico.
Como pode ser aqui que escrevo? Se falo mal essa língua sem batismo. Se ao meu redor todos roncam. Se meus sonhos só me servem quando acordo, se escrevo.

Rafael Alvarenga
Resende, 28 de março de 2013

segunda-feira, 1 de abril de 2013

Árvore


Árvore
Seu corpo é troncudo.  E possui sangue verde. Já o peitoral é de madeira. Inclusive eu vi quando nele tatuaram um coração com duas letras tortas dentro. Doeu. Mesmo assim seus braços jamais cessaram sua firmeza. Jamais tombaram esmorecidos.
                Quanto aos pés são pés normais de árvore mesmo. Estranhas são as unhas. Pretas da terra na qual se fincam.
No tempo da velhice as árvores perdem os cabelos amarelados; quebradiços e leves.
Seja o tempo que for, vem de todos os galhos informações de lugares outros. E ela ali. Sempre árvore. Enraizada. Permanente. Se as árvores pudessem voar onde é que fariam seus ninhos? E seus ovos? Na terra como ficariam indefesos!
Mas é pelo seu comprido que elas superam qualquer sensação. Pois seus cabelos correm feito nuvens crespas. E é por isso que as árvores sobem tão alto. É por isso tanto esforço a fim de levantar mais alto que telhados e jequitibás um único cacho de folhas que seja.
Na árvore apontam os galhos. Braços em forma de esperar abraço. Ilusão. Pois o que o outro busca é somente o abraço da sombra.
No dia a árvore dorme. De pé como um cavalo. De olhos fechados como os humanos. E assim dorme um sono normal, de árvore mesmo.  

Rafael Alvarenga
Resende 24 de março de 2013