domingo, 2 de dezembro de 2012

Tempestade de ontem


Tempestade de ontem

Ontem foi tempo de tempestade mor. Mas deixei para escrever hoje. Debaixo do mormaço sem sombras. Caiu vomitada a tempestade. Descarga feroz. Acuando a todos. Em minutos os vultosos fios elétricos transformavam-se em magricelas calhas negras. E um rio lodoso esculpia correntes entre as veias dos paralelepípedos.
O mundo recheava-se de fragilidade sob a chuvarada. Os telhados derretendo feito glacê confeitado. E toda sujeira das unhas, dos poros, de nossa higiene, ressuscitando após a via-crúcis urbana. Tantos dias estivera sepultada entre as entranhas do chão. Nossa sujeira caminha sobre as águas milagrosamente! Nos afronta e encurrala. Sujeira que antes crucificamos agora serpenteia pelas ruas. E a água, como um espelho, mescla nossos rostos e corpos com essa sujeira nossa. Não há horror maior do que vermos a nós mesmos na sujeira nossa. Essa sujeira qual, tanto confiamos, haveria de ir se embora com a descarga; com o saco preto; com o ralo fino da pia; com a boca larga de nossas janelas e portas.
A tempestade chicoteava pernas e persianas. Perdemos os cabelos, molhados e reduzidos. Nas costas corcundas do asfalto os pingos nascendo em papoulas brancas. Papoulas brancas e bem alimentadas, em vista do tanto de esterco disponível; esterco de nossos corpos limpos e medrosos.

Rafael Alvarenga
Niterói, 22 de outubro de 2012

Nenhum comentário:

Postar um comentário