Tempestade de ontem
Ontem foi tempo de tempestade mor. Mas deixei para
escrever hoje. Debaixo do mormaço sem sombras. Caiu vomitada a tempestade.
Descarga feroz. Acuando a todos. Em minutos os vultosos fios elétricos
transformavam-se em magricelas calhas negras. E um rio lodoso esculpia correntes
entre as veias dos paralelepípedos.
O mundo recheava-se de fragilidade sob a chuvarada.
Os telhados derretendo feito glacê confeitado. E toda sujeira das unhas, dos
poros, de nossa higiene, ressuscitando após a via-crúcis urbana. Tantos dias estivera
sepultada entre as entranhas do chão. Nossa sujeira caminha sobre as águas
milagrosamente! Nos afronta e encurrala. Sujeira que antes crucificamos agora
serpenteia pelas ruas. E a água, como um espelho, mescla nossos rostos e corpos
com essa sujeira nossa. Não há horror maior do que vermos a nós mesmos na
sujeira nossa. Essa sujeira qual, tanto confiamos, haveria de ir se embora com
a descarga; com o saco preto; com o ralo fino da pia; com a boca larga de
nossas janelas e portas.
A tempestade chicoteava pernas e persianas. Perdemos
os cabelos, molhados e reduzidos. Nas costas corcundas do asfalto os pingos
nascendo em papoulas brancas. Papoulas brancas e bem alimentadas, em vista do
tanto de esterco disponível; esterco de nossos corpos limpos e medrosos.
Rafael Alvarenga
Niterói, 22 de outubro de 2012
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