sábado, 30 de março de 2013

Comida nossa de cada dia


Comida nossa de cada dia

— Nesse mundo é cada cultura. Tem gente que não come feijão! Entende isso? Como pode a pessoa viver bem, saudável, sem comer feijão?
— Pior não é isso, meu amigo. Pior são aqueles que comem cada coisa de dar arrepio!
— Isso é verdade. – Leva o copo a boca e o esvazia.
— Escargot! É um Caracol. Caracol nada. Comem mesmo é a lesma.
— Cultura bizarra. Everaldo traz mais uma. – Grita para o garçom e aponta para a garrafa.
— E aqueles caras lá na China ou Índia, não sei direito, que comem grilo?
— Esses são demais, não é? Grilo é demais.
O garçom chega com a cerveja. Um deles pergunta:
— Everaldo tem o que de tira gosto hoje?
— Espera aí que vou dar uma conferida. É que tá saindo umas coisas agora.
— Tá ótimo. - Responde e enche os copos.
— Sei que no oriente eles comem até cachorro.
— Cachorro é demais, não é? ­ ­– Balança a cabeça e bebe um grande gole de cerveja.
— Impossível. Só lá mesmo.
Volta o garçom e apresenta o cardápio:
— Olha, tem tripa de porco frita, miúdos de frango: rim, sangue e moela, no caso é porção; croquete de camarão saiu agora. Tem também dobradinha e mocotó. Mais tarde feijoada completa.
Um olha para o outro e pergunta:
— E aí?
— Rapaz, adoro tripa de porco. Mas vou te dizer que o croquete daqui é supimpa!
— Então vamos fazer o seguinte: Everaldo dá pra trazer meia porção de cada?
Rapidamente o garçom volta com as duas meias porções. Um deles confessa:
— Esse croquete é bom mesmo! – Enche os copos novamente.
Chama o garçom e pergunta:
— Everaldo fala a verdade: Qual é o segredo aqui? – Aponta para os bolinhos. O garçom responde sem rodeio:
— Eles batem a cabeça do camarão. Aí sai um caldo. Depois mistura na massa.
Everaldo vai atender outros clientes. Os dois pedem mais cerveja e continuam:
— Sei, meu amigo, que nesse mundo tem gente que come até formiga.
— Francamente! Formiga não dá, não é? Formiga não dá mesmo! – Bebe mais um gole de cerveja.

Rafael Alvarenga
Cabo Frio, 14 de junho de 2012

terça-feira, 26 de março de 2013

Peido


Peido

— RG.
— E CPF?
— Também. Que foi isso?
— Peidei. Perdão.
— Absurdo! Agora dê um e-mail.
— Vô tentar. Meio peido é difícil.




Rafael Alvarenga
Cabo Frio, 21 de maio de 2012


sábado, 23 de março de 2013

Essa janela


Essa janela

Vejo o mundo por essa janela. E como aqui, sentado nesse sobrado, tudo fica distante, tudo fica também pequeno. As casas como caracóis velhos e mesozoicos. As pessoas como formigas. Parecem irão voltar todas para o mesmo buraco e fazer coisas iguais.
Agora sei do sol porque percebo a dissimulação das sombras. Uma criança passeia em sua bicicleta nova. Nova por ter chegado ontem. Compram-na à casa de penhores. Alguma dívida não quitada. Mas isso não é importante. Importa é o sol que não vejo. Cuspindo sombras trapaceiras. O menino da bicicleta embolsa uma forma alienígena. As rodas ganham aros enormes. Suas pernas ganham mais tamanho. O menino vira homem nas sombras. E a bicicleta bufa como um cavalo negro em disparada.
Vejo o mundo por essa janela. Vejo o mundo inteiro. E posso dizer, não é redondo. Aqui até sobe uma ladeira. Ali até faz uma curva fechada. Mas redondo mesmo não é.
Agora sei da mulher porque percebo a frouxidão das roupas do marido. Todas grampeadas na corda no fundo da casa. As cuecas ela agrupa todas em uma parte mais ao fundo ainda. Teme as vizinhas. As creem capazes de vasculhar os fundilhos mais profundos de sua intimidade sem volúpia.
Vejo o mundo por essa janela. Mundo vago e banal. Ah não fosse minha janela! E o mundo seria menos ainda.

Rafael Alvarenga
Resende, 23 de março de 2013

domingo, 17 de março de 2013

Quando falta coragem


Quando falta coragem

Comprou o jornal. Abriu numa página do meio. Depois noutra. Dobrou tudo. Pôs debaixo do braço e atravessou a rua. Entrou na padaria. Mesmo indeciso pediu uma média. Virou o punho e olhou o relógio. 8h. Reparou na rua no instante em que passava um carro azul. Voltou os olhos para a cesta de pão. A xícara tilintara sobre o balcão de mármore. A pedra fria. O leite amenizando o aroma do café. Tão quente o café com leite que não pode beber de um gole.
Abandonou metade da bebida. A mão no bolso sentiu a frieza das moedas. Ainda não havia criado coragem. R$ 4.500,00. Lembrou-se do jornal. Havia esquecido sobre o balcão frio de mármore. Graças a Deus! Voltou para buscá-lo. Deu alguma atenção às notícias comunicadas pela TV.
Ao sair novamente observou as propagandas de cigarro. Uma espécie de futurismo colorido. Mas nunca fumara em sua vida. Puxou o jornal debaixo do braço. O enrolou com as duas mãos. Olhou para a direita. Para a esquerda. Uma chuva fina caía por todos os lados. E ele ainda sem coragem.
Pensou nos R$ 4.500,00. E quando o vendedor o enxergou, ainda tinha a vassoura na mão. Mas foi dizendo antes que ele alcançasse o batente da concessionária: Faço pro Sr. por R$ 4.100,00 e fechamos negócio hoje!

Rafael Alvarenga
Resende, 13 de março de 2013 

sábado, 9 de março de 2013

Uma e outra mão


Uma e outra mão

Vejo as araras escandalosas. Voando em pares. Sua conversa é altissonante. Quero escrevê-las. Mas elas voam rápido demais. E eu só tenho duas mãos. Das quais uma repousa preguiçosa sobre a madeira da mesa. E a outra é quem trabalha. A outra é quem segura o lápis. E operando convulsiva escreve sobre os vozerios agudos das araras.
E mesmo quando preciso apagar algum adjetivo não consigo acordar a outra a mão. Faço tudo tão lentamente. Tão lentamente. Tão lentamente. Que as araras somem no céu hoje cinza. Morrem. Morrem e eu mal consigo ser rápido o suficiente para escrevê-las.
O que me vale é que vou imaginando. Entretanto a imaginação também é mais rápida do que uma única mão com um lápis entre os dedos pode registrar. Se pudesse escrever com as duas mãos; talvez me fosse suficiente.
Todavia vou imaginando as araras. Buscam entre as nuvens um silêncio bruto. E conforme o dia emprestam seus gritos ao tempo. Então começa a trovoar a tempestade.
E minha outra mão acorda. Segura a orelha da folha. Para não se sentir sozinha. Perde o sossego. Procura abrigo. Encontra a companhia da outra mão. Ambas temem.
Porque são gêmeas. E embora diferentes, sentem as mesmas coisas.

Rafael Alvarenga
Resende, 02 de março de 2013

terça-feira, 5 de março de 2013

Poesia na noite preta e velha


Poesia na noite preta e velha

Nos deitamos. A noite corria alta e silenciosa. Ela acordou o livro qual dormia entre nós e pegou a ler. O mundo todo escuro. E nosso abajur aceso marcando uma espécie de estrela na cabeceira do nosso universo.
Enquanto ela lia eu fechava os olhos. E brincava de sonhar. E nos meus sonhos quanta poesia. Quanto esplendor! Quando terminava de ler eu despertava. Na boca um sabor de fundo de sono. Nos olhos um arregalo pasmado. E se andasse o tempo um pouco mais devagar eu teria perguntado que lugar seria esse. Sonhar é como perder o equilíbrio.
A voz dela coava as palavras. E para o copo dos meus ouvidos chegava uma mensagem com cor e cheiro. Às vezes com sabor de café preto; ás vezes com barulho de faísca elétrica de bonde antigo. Isso tudo dormia dentro de páginas finas e claras. Como a água de um rio, fina e clara. As páginas virando, correndo, descendo. E delas não podiam escapar as letras. Pois escapar lhes arrancaria as vidas que por mão do poeta eram todas poesia.
Se eu pudesse contar tudo que ganhava ouvindo aquela voz me recitando estrofes na noite preta e velha. Não posso contar. Não posso medir. Por mais cheio de números que fosse o número final. Porque quando falasse, quando contasse, faltariam palavras para alongar as pernas da mentira. Faltaria tempo para ouvir mais poesia na noite preta e velha.

Rafael Alvarenga
Resende 26 de fevereiro de 2013

sexta-feira, 1 de março de 2013

O poeta e a criança


O poeta e a criança

Na capa do livro puseram uma foto do poeta. E como é difícil evitá-la. Pois está lá. A mão sob o queixo. Os óculos grossos como a proteger-lhe de minhas perguntas. E sua poesia é tão simples quanto seu nome, Carlos.
Eu o trouxe da biblioteca. Descansava desperto em um dormitório junto de outros poetas de nomes simples, Mário, João, Cecília, Fernando. Agora o leio para uma criança. É simples. Mas os homens crescidos e inteligentes dedicam cinquenta páginas a esclarecer o que quer dizer o poeta quando diz uma estrofe simples.
E a criança não sorri com a rima. Pois a rima não chega. A criança sorri quando o poeta diz que seu pai montava a cavalo. Sorri porque vê tudo. E caminha através da estrada da poesia de Carlos, assim como ela é mesma: sem vírgula, sem ponto e vírgula. Às vezes com algum pontinho aqui ou ali. O que poderia até parecer uma pedra no meio do caminho. No entanto, para a criança é como um irmão pequeno dormindo pela tarde. Simples.
Estamos em frente à janela. Precipita-se alguma chuva. O poeta fica a observá-la. A criança também. O poeta tira a mão de sob o queixo. Estica o braço. As gotas caem-lhe sobre o dorso da mão lançada para fora do abrigo.
Não sei se cai poesia. Sei que agora a criança só ouve a chuva.

Rafael Alvarenga
Resende, 25 de fevereiro de 2013