domingo, 26 de maio de 2013

sobrevivência


Sobrevivência

Aqui a luta pela sobrevivência não distingue inverno de primavera. Se a chuva torna difícil nosso dia, um sol escaldante também desidrata nossa força. Que ironia! Estamos distante do Ártico. Nessa zona verde e tropical os desertos não caminham com seus enormes pés achatados de areia.

Mas a luta por comida e abrigo ainda assim é selvagem. Alguns de nós mal conseguem caçar. Ficam ao longe. Observando através de vidros, refeições suntuosas. Aguardam a carcaça.

Há quem iberne. E também quem proteja ferozmente seus frágeis e mimados filhotes que só fazem comer e depender. Outros são presas. Milhões delas. Se aqui fosse a natureza. Mas não é. Aqui a morte de um não é alimento para a continuação da vida em geral. Aqui a morte de um não é absolutamente nada de significante.

Aqui é mais frio que o Ártico. Pois não há tundra, muito menos a beleza perigosa de um tigre branco. Aqui também não é deserto. Pois não há o rigozijo estonteante de encontrar Oasis. Muito menos passam por sobre dunas vivas caravanas misteriosas. Aqui é somente verde e tropical. Nosso inimigo nos dá a mão em cumprimento. E diz que estamos juntos. Em seguida vai embora.

Cabelo postiço; perna manca; olho vesgo; ofegante e horroroso. Predadores sem beleza. Sem qualidade. Refugiados entre os trópicos.

 

Rafael Alvarenga

Resende, 22 de maio de 2013

 

segunda-feira, 20 de maio de 2013

Um cofre


Um cofre

Adquiri um cofre para guardar meus segredos. Um cofre antigo. Negociado junto a um antiquário. Disse-me o mercador, que o artefato pertencera a um extraordinário soberano. Entretanto se desculpara pela precariedade de seus conhecimentos históricos. Pois não sabia se era um soberano do Curdistão ou da Kashemira. Sabia sim sê-lo um rei já defunto.
É um cofre muito pesado. Além do que é também ataviado com finas esculturas de ramos sem flores. No entanto, como o objeto não me interessava em motivo de ornamento, fiz questão de conferir sua fechadura.
O mercador, mesmo familiarizado com estranhezas, não me entendeu. Todavia frisou mais de uma vez que o cofre ainda preservava sua qualidade de guardar com segurança. Percebendo o tamanho de meu interesse nem apontou para os outros objetos. Conquanto fossem notados castiçais, bicicletas, chaleiras, telhas, lunetas, brasões e anéis.
No dia subsequente me trouxeram o cofre. Alojei-o em meu quarto. Separei meus segredos. Não eram muitos. Mas precisavam de espaço. Com cuidado pus todos eles no fundo escuro e gelado do metal.
Agora tudo que eu levava comigo podia ser contado. E eu ia por sob chuvas e trovoadas. Atravessava becos escuros. Regiões mal faladas não eram suficientes para me fazer dar meia volta. Meus segredos estavam todos guardados com segurança. De mim nada de verdadeira importância poderia ser surrupiado. E minha vida agora pareceria sempre limpa. Como as vidas que andam fingindo compostura pelas calçadas.

Rafael Alvarenga
Resende, 18 de maio de 2013 

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Frio sem luz


Frio sem luz

Nessa noite invernal as estrelas tremem de frio. Não há nuvem que lhes cubra qualquer das cinco pontas. Esse tempo põe mais medo nas pessoas que suspeita de ladrão. Dentro de casa, olhamos pela vidraça. Não há quem roube as roupas no meu varal. Nem quem veja o céu salpicado por essa poeira brilhosa.
É que não tem energia elétrica agora. E como ela nos vicia, essa energia. Pois o mundo todo fica até em silêncio. As pessoas mais corajosas, acanhadas, sussurram suposições. Alguns buscam até dormir. Outros se amuam nos cantos e se lembram de algum desleixo.
Agora é assim. Mas amanhã será dia novamente. E a vida, se me perguntarem, direi que é esse sempre repetir-se.
Hoje é que a noite há de ser referência. Num dia vindouro, quando a lembrança estender os braços a algum pedaço de coisa, agarrar-se-á a essa noite quando não havia luz nas lâmpadas.
Também é mais frio quando não tem luz. Porque ele, à vontade, caminha sobre nós. Roendo ossos e pelancas. Abraçando mãos e pés. Fluindo pelas vigas até os alicerces de nossas camas. Tudo na penumbra. Em total silêncio. Somos todos presas fáceis.
Ninguém está livre desse frio. Muito menos em uma noite sem energia elétrica.

Rafael Alvarenga
Resende, 13 de maio de2013

sexta-feira, 10 de maio de 2013

Caso de vida


Caso de vida

Veio a sirene. Em seguida sobrevieram ambulância e curiosos. Talvez passassem mal nos altos da cidade. E à beira do rio os pescadores imperturbáveis solicitavam silêncio, pois não se pesca em alvoroço. Já acompanhando a curva do asfalto ia a ambulância esbaforida. Correndo para não chegar tão depois da sirene.
No local uma senhora com as mãos sobre o peito velho. Pedia cadeira e encosto. E os socorristas atendiam profissionalmente, embora supusessem certo equívoco. Afinal, o chamado era para um homem que ia morrendo nas imediações.
Mas a equipe médica não demorou a saber que o caso era de adultério. A multidão informou ter ido o homem por ali. Mas esse não é caso de médico, avisou o doutor. Deveriam chamar a polícia, completou. E o povo esmoreceu contrariado.
Mas alguém vai morrer. Disseram do meio turvo da aglomeração. A senhora tirou uma mão do peito velho e avisou que se ninguém morresse, morreria ela mesma! A multidão não vibrou porque não cabiam comemorações. No entanto o murmúrio era zonzo e levemente jubiloso. Para o boteco encaminhavam-se as apostas. Quem morreria? O marido? A esposa? O amante? Ou a mãe, que era a velha e a sogra?
                Quando o enfermeiro perguntou se levariam a senhora para o hospital, ela respondeu que não a levariam enquanto não fosse decidido quem morreria.
                Com custo se retiraram da cena médico, enfermeiro e motorista. A ambulância voltou em silêncio.
De curiosidade e vergonha ninguém morre, cientificou o médico sereno.

Rafael Alvarenga
Resende, 30 de abril de 2013

sábado, 4 de maio de 2013

Faca


Faca

Não raro lhe tratam como a um animal peçonhento. Cuidado com essa faca! Como se o fio amolado lembrasse presas enérgicas. É uma enfermidade de nossa lembrança rude.
Se as facas houvessem de ficar zangadas! Quantas laranjas descascariam escavando até esburacá-las. Quantas cebolas abandonariam em rodelas a fim de nos arrancar lágrimas doloridas. Pois as facas afiadas enxergam exageradamente bem. Sendo, portanto, nada complicado avistar um dedo desavisado.
Na maioria das vezes sua boca é maior que o corpo. Naquela um dente alongado e único abre a gengiva metálica. E ali vive dentuço. Saído de um corpo encurtado, no qual todos se agarram.
 Mas as facas são mansas; e permanecem, grande parte do tempo, depositadas. Descansando desenganadas entre a frieza de outros talheres.
Além do que não bebem, não comem. São como faquires ou ascetas, embora indiferentes à fé. E é em sua magreza firme onde se instalam um sem número de cicatrizes. Às facas é regime obrigatório verem sempre o que fazem.
Por isso, quando cegas, são torturadas. Esfregadas em pedras de amolar, em chairas, em concretos e até mesmo nos seus semelhantes.
Para elas redimir o fio é um processo cáustico e doloroso. E se não fossem somente facas diria até ser um processo que lhes alcança a alma.

Rafael Alvarenga
Resende, 02 de maio de 2013