sábado, 10 de maio de 2014

A história do rapaz que nunca amou a moça

A história do rapaz que nunca amou a moça

Palavras! Preciso delas para a história do rapaz que nunca amou a moça. Um rapaz esquisito que ficava com a moça para ter do que desgostar. E uma moça boba, esperançosa de tudo perfeito e feliz. Faz tempo que isso aconteceu, mas ainda lembro. Nada fez o destino. O rapaz agiu sozinho: desmanchou o namoro com o coice da palavra não. E o rapaz não pagou nenhum castigo até hoje. É milionário de não sei de quê. E a moça tem um filho feio de um outro rapaz que ela não gosta nada. Esse novo rapaz, pai do filho feio da moça sabe um pouco sobre o passado dela. Entretanto por nada desconfia do que ela ainda pensa. A moça faz para o rapaz que ela não gosta tudo aquilo que queria fazer para o que ela ainda gosta. E desse jeito vai pondo, por cima dos afazeres, uma pelúcia de felicidade.
O menino, seu filho feio, vai mal na escola. E não gosta de ir pescar com o pai nos fins de semana. Prefere ficar ao balcão da venda do avô materno. Mas como não se encontra em dar um troco sequer, o avô também lhe vai reprovando aos empurrões.
E essa mãe bem informada sabe que o rapaz antigo, ainda bem lembrado, tem uma filha linda e inteligente. Um dia a mãe chegou a pensar em como se sentiria satisfeita, e talvez vingada, - quem sabe? - se seu filho desposasse essa menina. Para que, através de uma contiguidade do amor, ela reencontrasse o rapaz.
Nunca aconteceu. Para isso jamais achei palavras.

Rafael Alvarenga

Resende, 10 de maio de 2014

sexta-feira, 9 de maio de 2014

Uma forma de se destacar

Uma forma de se destacar

Um sujeito indestacável. Ouvia Beatles, bebia limonada, gostava de feijão com arroz. E a vida lhe passava também normalmente, com noites e dias, salário e contas e algumas frutas da estação. Como se pode notar, um sujeito indestacável.
Pensava muito nas coisas, especialmente em si mesmo. Até que concluísse poder até cometer uma delinquência ou profanar algum rito ou mentir. Jamais suspeitariam dele. Aquele sujeito manso, senhor de um lar tão silencioso.
Foi assim e pegou a desacatar a si mesmo, às leis que se lhe impunha. Mas como aquilo era difícil! Revoltara-se contra si e em razão disso se dividira em dois. E se um aniquilasse o outro voltaria ao ponto inicial. Seria tudo como antes. Pois uma revolta apenas empunharia novas regras.
Enfim, a briga interna entre seus dois eus era caseira.
Terrível foi no dia em que o viram bebendo água no gargalo da garrafa de vidro. Sentiu a reprovação nas pupilas alheias. Acreditou, naquele instante, ter perdido o título de indestacável. Diriam que ele ouvia uma música trash bebendo cachaça com limão. Que de sua cozinha saía um forte cheiro de vísceras cozidas. Diriam que não trabalhava, sendo assim difícil supor como pagava as contas. Diriam que ele odiava frutas e ainda que seu lixo era uma verdadeira imundície.
Um gole d’água deu ao mundo um sujeito destacável. Um sujeito antes sozinho, agora extraterrestre.

Rafael Alvarenga

Resende, 09 de maio de 2014 

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Essa manhã

Essa manhã

É insólita minha manhã. Nela não há qualquer tautologia; qualquer pessoa que me espie medrosa por detrás de alguma pálpebra.
Quem assinou esse acordo? Antes da hora a cidade é escura e vazia. A névoa soterra ruas e casas. E as luzes dos postes ganham aureolas ou anéis, pois não sei se são ingênuos ou saturnianos. Mas eis que de repente as pessoas acordam. Andam pra lá e os carros correm pra cá. O mundo ganha dia, luz e barulho em uma ordem que não altera o resultado de nada a seguir. Quem assinou esse acordo, embora pudesse, talvez sequer acorde para ver o dia nascer em poesia.
Mas eu, eu não assinei nada, eu tampouco cometi algum pecado. Eu vivo céus e infernos que se alternam em um agora instantâneo. Entretanto sou tão despretensioso que às vezes paro tudo e em meio a algum escarcéu entro em uma confeitaria e me demoro a escolher, até que peço um pedaço de bolo de chocolate.
A manhã vai acabando. E tudo que posso fazer é ligar uma música no volume máximo. Por um instante o som culminante entra por todos os sentidos. O sol crescendo sobre a cidade. A música não me deixa ver que significa um cortejo fúnebre levando a manhã morta. Vai ser enterrada embaixo de uma árvore muito grande. Onde não cresce grama, onde as raízes aparecem num nó entre planta e terra esfarinhada.
A manhã já acabou.

Rafael Alvarenga
Resende, 08 de maio de 2014


domingo, 4 de maio de 2014

Cor de olhos

Cor de olhos

Conhecemos-nos na infância. Lembro-me dela dentro de um vestido violeta. Lembro-me, aliás, que tudo dela tinha cores berrantes. Até seus olhos jorravam, à altura da minha visão, um azul aceso que em algumas ocasiões me amedrontava. Chegava a crer que aquilo era cor de olho de vampiro ou outra coisa fantástica.
Jamais a esqueci. Um dia, que para mim não tinha data, minha família se mudou da cidade. Vivi então uma adolescência cheia de olhos cujas cores eram triviais. Além disso, não acreditava mais em núpcias como antes. Agora a união tinha outros ensejos.
***
Alegra-me muito saber que a vida seja feita de tantos reveses. Outro dia reencontrei num relance, aquelas cores rascantes e inesquecíveis dentro de dois olhos. Prontamente reacreditei em tudo quanto havia desacreditado.
 Ela me chamou pelo apelido. Constrangi-me feito um menino.
Perguntamos pela vida e ela disse estar ali à espera do filho mais velho. Tinha quatro. Quatro filhos! E eu desprovido até dos sonhos de infância. Ela ficou olhando invariavelmente, como fazia sempre. E eu perguntei pelo óbvio: os quatro filhos. Ao que me respondeu de olhos abertos que teria mais. Cinco filhos, pensei. Falei que era incomum nos nossos tempos.
Não, eram todos muito comuns, ela respondeu. Tinham olhos comuns de pais comuns. Disse não estar satisfeita enquanto não tivesse um filho com os olhos dela: inesquecíveis e domadores.
Como achei aquilo uma demência, dei um número de telefone inventado na hora e disse adeus. Eu nunca quis ter um filho com olhos de cores berrantes e acesas e depois tive medo de sua psicose.

Rafael Alvarenga

Resende, 23 de abril de 2014

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Uma mãe Outra filha Um pai

Uma mãe Outra filha e Um pai

Uma esfrega o chão
Outra baderna as panelas sob a pia
Uma diz não precisar de rodo agora
Outra não se satisfaz
Uma enche balde d’água
Outra fica no meio do caminho
Uma explica que o lixo não brinca
Outra pede colo
Uma traz os tapetes do banheiro
Outra arrasta um banco pelo quarto
Uma fecha uma porta
Outra abre uma boca em choro
Uma pede que não se fique triste
Outra vai ao chão em pirraça
Uma oferece beijo
Outra quer mais, muito mais
Uma oferece companhia na brincadeira
Outra deseja cumplicidade na bagunça
Uma põe fralda no urso de pelúcia
Outra estranha
Uma explica
Outra soletra
Uma acha graça
Outra se deliga
Uma vai atrás
Outra quer novidade, muita novidade
Uma fala da louça
Outra pede papa
Uma explica que vai prender o cabelo
Outra olha, mas não esquece o que quer
Uma confere o calendário
Outra quer tudo hoje
Uma conversa
Outra se cala
Uma aproveita e se cala também
Outra remexe o que já está remexido
Uma não dá bola
Outra fala seu dialeto de Ô, Ê, Mi, PA, CÔ, CA
Uma pensa: amanhã é sexta-feira: banco, oficina, cartório...
Outra espirra
Uma acode, lenço em punho
Outra espalha brinquedos
Uma lembra-se de música
Outra leva o dedo ao botão do rádio
Uma escolhe a música
Outra sai correndo
Um olha pelo corredor
Outra lhe pede colo
Um sabe: é o ponto final do poema.

Rafael Alvarenga

Resende, 01 de maio de 2014