domingo, 12 de julho de 2015

Telefone

Telefone

Cidade grande organismo. Ruas estreitas como intestinos delgados.  Avenidas largas como intestinos grossos. Mas tudo congestionado. Coisas demais nas tripas. Tudo preso. Carreiras longas de ônibus e as pessoas enfezadas. Sentadas a um palmo de distância de quem está sentado no outro ônibus. Apartamentos sobre rodas, tanto era o tempo que se gastavam nos trajetos. Janela com janela.
Eles se olharam. Olharam-se mais uma vez. E outra, agora com o interesse anunciado e mútuo. A janela dela estava aberta. Ele abriu a sua e logo tirou o fone de um dos ouvidos - achou ótimo que não estivesse em um frescão. Ela olhou novamente o celular, mas não tirou o fone para não se parecer tão fácil. Contudo desligou a música.
Se olharam novamente, dessa vez sorriram. Ele tomou coragem e pediu:
̶  Me dá seu número?
Ela não hesitou. Ditou e sorriu. Ele foi digitando, até que perguntou:
̶  76?
̶  73.
O transito não andava. Eles mantiveram as janelas abertas. Rápido ela recebeu uma mensagem de texto via celular. Ele a convidava para uma amizade virtual. E um bate papo on line. Ela aceitou, claro, e sorriu também. Ele escreveu primeiro:
̶  Td bem, Stephanie?
̶  Td. E vc?
̶  Td. Cansado. Volta do trab.
̶  Eu tb.
Ele espera um pouco. O que dizer? Se pergunta. Envia para ela convite de amizade através de uma rede social. Ela aceita de pronto. Ficam um vasculhando a vida do outro através da lente virtual.
̶  Tb curto praia. – Diz ele por mensagem eletrônica
̶  Tb fui no festival de cine. – Diz ela.
Ele é separado. Ela descobre pela rede social. Dois casamentos. Não gostei, ela julga. Das duas uma, ou está querendo casar de novo para separar de novo, ou só quer pegação.
Que religião é essa? Ele se indaga e continua pensando: Nunca ouvi falar. Só falta ser uma doidona que vai querer me possuir até de forma sobrenatural. Não podia ser católica dessas não praticantes? Porque ateia também é demais.
Novamente por mensagem eletrônica ela pergunta:
̶  Vc já foi em Macho Pichu?
̶  <. - Ele responde e pergunta de imediato: Esse ruivo é seu namorado?
̶  Ñ.
Devia dar mole pra outras mulheres enquanto era casado. Deve achar que isso é uma prática comum. Nem todos são iguais a você, meu filho. – ela pensa.
Daqui a pouco ela vai me dizer que é louca para ir a Machu Pichu. E vai falar de magnetismo, misticismo e essas viagens. – ele pensa e logo escreve:
̶  Temos amiga em comum.
̶  Kem?
̶  Márcia Ramos.
Ele bebe e fuma. E pelas fotos parece que muito.
Ela tem quatro irmãos. Que exagero.
Ele gosta de paraquedismo. Nunca casaria com um homem assim. Vai que fico viúva?
Ela odeia cozinhar. Mulher que não cozinha agrada menos aos homens. Li isso não sei onde, mas concordo.
Ele é filho único. Deve ser mimado. É minado sim. Perdeu o pai ainda criança. Imagina essa mãe? Deve ser por isso que as outras duas se separaram dele.
Ela é estudante de medicina. Legal. Ganhou um ponto. Mais quer se especializar em urologia. Que absurdo! Perdeu dez pontos. Não pegaria na mão dela de jeito nenhum.
Ele é flautista! Deve viver de mesada até hoje. É melhor interromper essa conversa:
̶  Sem bateria.
̶  Eu tb.
̶  A gente se fala depois.
̶  Ok.
O pensamento é o mesmo em ambos: E esse trânsito que não anda. Ainda bem que não estamos no mesmo ônibus. Agora não dá nem pra distrair com o telefone.

Rafael Alvarenga
Itatiaia, 22 de maio de 2015


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