Telefone
Cidade grande organismo. Ruas estreitas como
intestinos delgados. Avenidas largas
como intestinos grossos. Mas tudo congestionado. Coisas demais nas tripas. Tudo
preso. Carreiras longas de ônibus e as pessoas enfezadas. Sentadas a um palmo de
distância de quem está sentado no outro ônibus. Apartamentos sobre rodas, tanto
era o tempo que se gastavam nos trajetos. Janela com janela.
Eles se olharam. Olharam-se mais uma vez. E outra,
agora com o interesse anunciado e mútuo. A janela dela estava aberta. Ele abriu
a sua e logo tirou o fone de um dos ouvidos - achou ótimo que não estivesse em
um frescão. Ela olhou novamente o
celular, mas não tirou o fone para não se parecer tão fácil. Contudo desligou a
música.
Se olharam novamente, dessa vez sorriram. Ele tomou
coragem e pediu:
̶ Me dá seu
número?
Ela não hesitou. Ditou e sorriu. Ele foi digitando,
até que perguntou:
̶ 76?
̶ 73.
O transito não andava. Eles mantiveram as janelas
abertas. Rápido ela recebeu uma mensagem de texto via celular. Ele a convidava
para uma amizade virtual. E um bate papo on
line. Ela aceitou, claro, e sorriu também. Ele escreveu primeiro:
̶ Td bem,
Stephanie?
̶ Td. E vc?
̶ Td.
Cansado. Volta do trab.
̶ Eu tb.
Ele espera um pouco. O que dizer? Se pergunta.
Envia para ela convite de amizade através de uma rede social. Ela aceita de
pronto. Ficam um vasculhando a vida do outro através da lente virtual.
̶ Tb curto
praia. – Diz ele por mensagem eletrônica
̶ Tb fui no
festival de cine. – Diz ela.
Ele é separado. Ela descobre pela rede social. Dois
casamentos. Não gostei, ela julga. Das duas uma, ou está querendo casar de novo
para separar de novo, ou só quer pegação.
Que religião é essa? Ele se indaga e continua
pensando: Nunca ouvi falar. Só falta ser uma doidona que vai querer me possuir
até de forma sobrenatural. Não podia ser católica dessas não praticantes?
Porque ateia também é demais.
Novamente por mensagem eletrônica ela pergunta:
̶ Vc já foi
em Macho Pichu?
̶ <.
- Ele responde e pergunta de imediato: Esse ruivo é seu namorado?
̶ Ñ.
Devia dar mole pra outras mulheres enquanto era
casado. Deve achar que isso é uma prática comum. Nem todos são iguais a você,
meu filho. – ela pensa.
Daqui a pouco ela vai me dizer que é louca para ir
a Machu Pichu. E vai falar de magnetismo, misticismo e essas viagens. – ele
pensa e logo escreve:
̶ Temos
amiga em comum.
̶ Kem?
̶ Márcia
Ramos.
Ele bebe e fuma. E pelas fotos parece que muito.
Ela tem quatro irmãos. Que exagero.
Ele gosta de paraquedismo. Nunca casaria com um
homem assim. Vai que fico viúva?
Ela odeia cozinhar. Mulher que não cozinha agrada menos aos homens. Li isso não sei
onde, mas concordo.
Ele é filho único. Deve ser mimado. É minado sim.
Perdeu o pai ainda criança. Imagina essa mãe? Deve ser por isso que as outras
duas se separaram dele.
Ela é estudante de medicina. Legal. Ganhou um
ponto. Mais quer se especializar em urologia. Que absurdo! Perdeu dez pontos.
Não pegaria na mão dela de jeito nenhum.
Ele é flautista! Deve viver de mesada até hoje. É
melhor interromper essa conversa:
̶ Sem
bateria.
̶ Eu tb.
̶ A gente se
fala depois.
̶ Ok.
O pensamento é o mesmo em ambos: E esse trânsito
que não anda. Ainda bem que não estamos no mesmo ônibus. Agora não dá nem pra
distrair com o telefone.
Rafael Alvarenga
Itatiaia, 22 de maio de 2015