sábado, 30 de agosto de 2014

Lobo-guará


Lobo-guará
Nosso carro é tão antigo que sua cor é azul. E nessa terra de longas estradas repletas de carros cor de asfalto, ele parece um pedaço de céu sem altura. Ia se tornando coisa de álbum de figurinhas. Raridade quando atravessava as curvas empoeiradas de um inverno seco. Que pensamento esse que me sobrevinha! E eis que em manhã gelada vaga pela minha frente um animal solitário. Magro, alto, pêlo alaranjado, patas negras, como se sujas da lama que engrossava os beiços do córrego. Era um lobo-guará em pessoa! As orelhas altas e parabolicamente abertas. O passo trôpego. Talvez em desfalque de firmeza.
Ele olhou para trás. Viu nosso pedaço de céu sem altura e perpendiculou o passo mato adentro. Sumiu com todo melindre de quem pisa em galhos e cascas secas sem quebrá-los. Não dava sequer sinal do atalho pelo qual seguia. Mantinha o matagal incólume, folha após folha. E até mesmo a poeira fina e leve não se levantava à sua passagem. O lobo-guará também era já uma raridade. Ia se tornando coisa de álbum de figurinhas. Folha de enciclopédia na qual demoramos com gosto e imaginação. Um pedaço de natureza sem nenhum cativeiro. E para mim, naquele momento, garantia de que a vida ainda não estava morta. Entretanto, embora o lobo-guará voltasse para o miolo do verde, a fumaça fazia sinal mais à frente: era a queimada que lhe expulsava de sua morada.

Rafael Alvarenga

Itatiaia, 27 de agosto de 2014

sábado, 16 de agosto de 2014

Santa bola, maldita bola

Santa bola, maldita bola

Tanta tristeza que o menino sequer corria. Andava. Cabisbaixo. Quando atravessava o batente a mãe se preparava para gritar, mas desistia. Ele atravessava manso a rua estreita.
Ao fogão, ela olhou as panelas fumegantes. As mãos não podiam perder o ponto dos quitutes. Precisava entregar as encomendas. Mas será que o menino tomara jeito?
No outro lado da casa o avô. Afeiçoado à política porque idolatrara a figura de Seu Getúlio Vargas. Político que pensava na gente, dizia ele frente às propagandas eleitorais. Ora, foi justamente a aposentadoria que o permitiu formar opinião diferente sobre o menino: Estava lhe faltando algo.
Invés de lhe perguntar o que era, como faziam todos, perguntou onde estava a bola. O menino embaraçou-se. Mas içou a cabeça depois de semana. E novamente perguntou: Furou? O menino não controlou os olhos. Fugindo dentro das órbitas como um animal temendo o castigo na jaula. Entretanto como o avô não tinha mais mão para bater ele respondeu: Tá lá em cima. E apontou para o telhado alto da igreja.
Quando o avô se levantou, o menino sorriu brilhoso como noite de lua. Mas logo lhe trovejou a face quando o viu tendo com a mãe na cozinha.
Daí a pouco veio o pintor que manejava a lateral da igreja. A Mãe lhe mandara recado, que fazendo o favor e por uns quitutes fresquinhos, alcançasse a bola do menino, perdida pelo alto do telhado. À tarde trouxe a bola e o menino não se conteve, pulando sobre o salvador do seu mais precioso bem.
A mãe, por um canto da boca agradecia o favor, por outro praguejava a maldita bola que instaurava o risco de se perder o ponto do doce ainda no fogo.
Num instante a tarde jorrava meninos pela rua. Uma alegria repartida, gritada, cintilante! Santa bola, disse o avô!

Rafael Alvarenga

Itatiaia, 16 de agosto de 2014

domingo, 10 de agosto de 2014

Com medo

Com medo

O escuro da noite não tinha sequer uma estrela. Mas Ele sabia seu rumo. Caminhava firme. Contudo o vento, repentino e abusado, fazia estalar o capim seco. Ele virava o rosto de súbito na direção do ruído. Pois a mente é mais rápida que qualquer movimento, e já havia ilustrado os passos sorrateiros de quem se esquivava pela sebe.
Olhou para o outro da rua. A árvore podada tinha galhos ascendendo em ziguezague de bêbado em direção à folhagem parca. Mais uma vez a imaginação. Punha nos galhos a figura de um homem bem arrumado. Porém, talvez descalço. Ele tentava apertar o passo, mas isso era ainda mais perigoso. Na medida em que cria se proteger apenas olhando para todos os lados, tropeçava nas dobras das próprias pernas.
O Medo se materializava em arrepios pela pele toda. Mais alguns metros alcançou a luz dos primeiros postes. A rua deserta e seca empoeirava a respiração bufante. O coração corria ainda que sem pernas. E a sombra que o acompanhava era inteiramente indesejada. Porque, quando entre um e outro poste de luz, ela se dividia; jogando-o para trás e para frente, como se ele caísse em duas bandas cortadas sem detalhes. Afiada imaginação!
Havia pedras pelo chão. Iniciou a pegá-las. Encheu a mão delas. Atirou uma para dentro do mato. Outra para frente na estrada. Olhou para trás mais vez. Estava chegando a casa. A imaginação bocejava.
Diminuiu o passo e quase sossegou não fossem os olhos de um gato tremeluzirem acessos debaixo da copa curva de um arbusto entortado. O medo se alimenta de qualquer coisa!

Rafael Alvarenga

Itatiaia, 10 de agosto de 2014

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Uma galinha gorda

Uma galinha gorda

Veio me perguntar se gostava de galinha caipira. Eu pensei logo nos molhos pardos que há tanto não via mais. Respondi afirmativamente junto a um sorriso bojudo. Pois então ela me disse que traria uma galinha bem gorda. Diminuí um pouco o sorriso em vista do adjetivo dado à ave. Mas agradeci. Na verdade, por um átimo, lembrei-me de minhas artérias ainda jovens. Talvez com medo de senti-las entupidas. Podia ser uma galinha magra, ainda que com alguma carne, pensei em dizer. Não disse nada. Não adiantaria nada. Ela estava tão alegre, e me agradecia tanto, que jamais me presentearia com uma galinha magra. Seria uma galinha caipira, e bem gorda.
Senti uma fanfarrona fisgada no peito. Alguma artéria noticiando sua fragilidade.
Era melhor frisar que eu não fazia nada de mais. Eles é que me faziam um enorme favor. Pois o material que recolhiam não me tinha mais serventia. Era um estorvo! E eu, debilmente paralisado, encontrava neles uma solução. Levavam o que eu precisava que fosse levado. Eles é que me faziam um favor!
Eu tentava explicar essa inversão dos agentes favorecidos. Mas eles carregavam tábuas, escoras, mourões, ripas e estacas. E todas as vezes que passavam por mim, prostrado com os braços pendurados na cerca, me lembravam da galinha gorda.
Diziam-me que com aquele material levantariam sua primeira casa própria. E assim, seriamente felizes, me agradeciam com a firmeza do suor que lhes escorria pelas faces. Pensei em dizer que eu não podia com gordura. Determinação médica.
Fiquei refletindo, longe de qualquer ação; e eles me perguntaram se podiam levar algumas latas vazias de tinta. Claro que podiam. E recomeçaram a me agradecer, sem me deixar explicar que eles é que me faziam um favor. Davam glória aos céus por terem me encontrado. Abençoavam meu nome. E afirmavam com a rigidez de quem cumpre: Vamos trazer pro senhor uma galinha gorda.

Rafael Alvarenga
Itatiaia, 04 de agosto de 2014