domingo, 23 de março de 2014

Um sonho que tive

Um sonho que tive

Havia um único caminho. Mas há muita estava fora de uso. Por isso flores amarelas lhe cobriam extensamente. Vimos um rio de pétalas. E as borboletas surfando nas pororocas que o vento provocava naquele amarelo de sol.
Enfim, cri ser mau augúrio começar uma caminhada pisando em flores.
Abri os dentes do meu facão. A mata era um esqueleto vivo. Magro e forte como um maratonista. Capaz de retorce-se de alto a baixo em um circense contorcionismo. Fui penetrando com dificuldade. Caminhando sob o suor da selva peluda que me envolvia. Abraçado por infinitas árvores de braços abertos para me receber para sempre ali, porque sabiam, eu não fugiria mais, nunca mais.
Belisquei-me forte. Não acordei de sonho algum. Continuei fugindo mesmo assim.
Devia seguir para o leste. Estava com sorte. Certamente teria sorte. Não pisei em uma flor amarela sequer. Mantive no mundo um tom esparramado de beleza. Errei, entretanto. O mundo não usa valores em sua panaceia de preservação de si mesmo. O mundo se alimenta do que ele mesmo carrega sobre seu coro. Engole seus próprios piolhos.
Agora havia quantos caminhos me fossem possíveis contar. E como eu aprendi tantas coisas na escola, aprendi a contar até o infinito. Agora isso me enlouquecia.
O sol murchava. A noite escondia as flores.

Rafael Alvarenga

Resende, 21 de março de 2014

domingo, 16 de março de 2014

Conquista

Conquista

Fez promessa a Santo Antônio. Garantindo ao casamenteiro terras e céus caso lhe fosse dada a graça de ter em casa todas as tardes aquele que desejava. Imaginava-o esparramado numa cadeira. O jornal suspenso pelas mãos, com o noticiário esportivo oferecendo opiniões. Queria-o! Mesmo que fosse unicamente após o trabalho.
O santo trabalhava dia e noite e mesmo assim não dava conta dos pedidos. E ela impaciente. E se houvesse alguém a sua frente na fila cuja graça desejada fosse o mesmo Ele?
Resolveu procurar um caminho mais curto. De imediato pensou em algo de sete dias. Não demorou para descobrir que podia ser até em três dias apenas. Entretanto encontrou uma mulher que lhe cobrou uma abundância. Cada dia a menos uma centena a mais nos cifrões! Sorte sua comprar o jornal naquela tarde. Nele publicava-se uma simpatia para mulher amada. Bem, serviria para homem amado também, julgou. Faltava-lhe dinheiro suficiente para tê-lo em três dias. Mas o tempo era tão curto... Ligou mesmo assim, a fim de pechinchar. Por amor, a mulher disse diretamente, não atendia ninguém. Ficava claro que, sob certa medida, o amor lhe custaria caro.
Fez a simpatia do jornal. Mas de forma alguma brigou com santo Antônio. Com o dinheiro insuficiente para trazê-lo em três dias, comprou um belo vestido de alça. Durante a festa de São Benedito, investiu em um copo de vinho. Depois negociou seu acanhamento ao olhá-lo calorosamente.
Aproximaram-se entre risos e comentários. Quando, antes do beijo, ele declarou: Você me conquistou! Ela não pestanejou e respondeu: Sou uma mulher de muita atitude.

Rafael Alvarenga

Resende, 16 de março de 2014

sábado, 8 de março de 2014

Carnaval

Carnaval

Faz muito tempo que eu vejo o carnaval. Dias clareados, abarrotados de aleluias embriagadas. E nas noites paitês de olhos abertos cintilando como estrelas.
Os mascarados vestem sorrisos incansáveis. E uma moça, muito competente funcionária pública, abandonou os óculos em casa, sobre a mais alta prateleira.
No bar da esquina da praça há muitos afazeres. Agora mais copos e pratos servem às fomes e sedes de festejo, em  razão da sexta-feira, vizinha ao carnaval, ser tratada pelo povo como sexta-feira de carnaval. Feliz, o dono do bar diz que o freguês tem sempre razão.
Mas assim o país não se desenvolve. Querem que o carnaval tenha mais dias que uma semana. Disse um homem ao parapeito de sua janela no quinto andar. Mas virou os olhos para a televisão a fim de saber a que horas sua agremiação do coração desfilaria.
Outro rapaz detesta samba. Por isso sabe exatamente quando começa e termina o carnaval. Sabe até quais são os piores dias. E assim se prepara para fugir. Compra seus víveres com antecedência. Faz reservas. E ouve qualquer outra música até se calar o último trepidante tamborim.
Aqui pela minha rua passa um pequeno carnaval nesse instante. Um grupo miúdo, alguns de olhos dissimulados, outros com pedaços de serpentinas enrolados no pescoço. Falam alto. E se me verem à janela viram zombar de mim. Escondo-me!! Queria eu que o carnaval transformasse as pessoas.
Segurando minha mão a criança acredita que o mundo mudou. O café da manhã não tem hora para acabar. E a brincadeira, lhe parece, envenenou todo ar.

Rafael Alvarenga

Itamambuca, 03 de março de 2014