domingo, 24 de fevereiro de 2013

Cavalo baio


Cavalo baio

Seu silêncio durou uma idade de dias. O que ocorreu não logo depois dela ter desaparecido. Pois no dia em que encontrou os lençóis frios ele gritou de desespero. Depois gritou de raiva. Raiva daquele que pudesse tê-la feito algum mal.
Passou um e outro dia procurando vestígios dela. E nesse tempo, que duraram muitas horas de vigília, o fio da faca lhe andava na cintura como um cão de guarda pronto a atacar. Aí veio alguém trazer o comunicado. E não fosse um parente tão ancião não acreditaria. Pois no recado enraizava-se a certeza seca de que ela não fora levada a força.
Acontecera tudo em silêncio, até o momento em que o cavalo galopara. Um baio alto de passadas compridas e relincho lacônico. Ela fora na sela. Com as mãos amarfanhadas entre os fios da crina clara do animal. Foi sorrindo. Embora, talvez, com algum medo de cair. E o que lhe amarrava não eram as cordas de nenhum sisal. Os laços eram de uma substância invisível e poderosa: a paixão.
Ele ouviu tudo calado. E assim continuou até tomar alguma decisão. O que mais lhe atrapalhava as ações era ver que tudo estava ali. Ela não levara nada. E era justamente por sobrar tanta coisa que a dor latejava cheia.
Naquele tempo veio chuva. Então ele aproveitou para achar que estava bom.
Só não podia ver um cavalo baio. Bicho traiçoeiro. Bicho perverso, julgava.

Rafael Alvarenga
Resende, 24 de fevereiro de 2013

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Casa da noite


Casa da noite

Na ladeira curta uma casa gorda. De olhos quadrados e cômodos vazios. De telhados negros porque imundos pelo tempo. Na maçaneta o azinhavre esverdeando as digitais de dedos mortos. No interior da casa um teto aéreo. Mais culminante que o céu estendido até o alto da ladeira.
A noite morando dentro da casa. No fim das tardes estava ela espiando a rua por debaixo da porta. E quando menos se acreditava; quando ninguém viesse pela rua, ela escorria negra pelas veias do mundo. Passeando cega na frente de nossos olhos. Com as mãos mudas tateando as abas de nossos chapéus.
Depois, antes que brilhasse o dia, serpenteava de volta para o interior da casa. Dormia em enormes teias tecidas nas quinas dos quartos. Mal chegava a cozinha. Jejuava. Aliás, apenas se nutria fora de casa. Predava as sombras. Quanto mais negras, mais suculentas.
Então, de volta ao interior da casa gorda, a noite mantinha, lá dentro, tudo no escuro. Cortinas e poltronas; bules e peneiras; vassouras e candelabros; relógios e torneiras. A escuridão tombava sobre as coisas como uma grossa camada de poeira. Escondendo rachaduras e amassados. E não deixando, assim, que estória alguma fosse contada a quem surgisse pela ladeira.

Rafael Alvarenga
Resende, 11 de fevereiro de 2013 

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Um trecho



A um trecho do caminho os jamelões desabados mancharam as solas de meus calçados. A partir dali, de dois em dois, segui carimbando todo o papel de terra.

Mais a frente um sabiá. Peito laranja e bojudo. Armado de energia e bico afiado. Em pequenos sobressaltos, movia-se sobre a folhagem. Bailava seu ritual xamânico. Guardava e aguardava algum milagre milenar. Apressei o passo. As impurezas do meu nervosismo delatavam-me. Quanta coisa não me pertencia. Mas eram justamente essas que eu arrastava amarradas a meus calcanhares como bolas de ferro. O que nos pertence não necessita ser carregado dentro de um reboque de posses. Não precisa ser carregado. Já é nosso. Pode ficar onde melhor lhe guardam o tempo e o espaço.
Fazia semanas inteiras sem lua. Semanas completas com noites tão somente negras. Sem que nosso ânimo minguasse. Ou que nossa biografia se enchesse de algum alento. Parábolas dessas nuvens que não lavavam os jamelões perecidos. Que não me faziam sentar dentro de casa. Resignado com o tempo, disposto a crescer sobre o papel como um sol rachando-o com letras.
A outro trecho do caminho a tarde já caiu. E agora chora em virtude dos joelhos arranhados. A um trecho atrás a noite fechou os olhos; pois não é através deles que vê.

Rafael Alvarenga
Resende, 23 de janeiro de 2013