sábado, 17 de novembro de 2018

Torcedor pelo avesso




Nasceu em uma casa onde se vestia uma única camisa. Nos dias de jogo se reuniam. E na comemoração do gol esqueciam até das dívidas. Lugar pacato aquele. Sequer um grito de campeão continental poderia ser ouvido pelo vizinho, tal era a distância e o tanto de árvores.
Por ali a moça cresceu e viu a tal crise carcomer bolsos inteiros. Mesmo assim ela conseguiu trabalho em outra cidade. Pagava-se bem, contudo o horário era uma mordida dolorosa quando acordava às 4 da madrugada. Precisa descansar. Mas quem é que consegue pegar no sono às 19h? Conversou sobre a possibilidade de entrar às 7h. Só ano que vem, disse o chefe.
E justamente nesse ano seu time montou um elenco reluzente. Jogadores de nome, técnico experiente. Na primeira semana ela escolheu não dormir. Viu o jogo inteiro. Um baile! Seu time arisco e inventivo como nunca vira. Mais duas semanas e ela estava um bagaço. Impossível dormir à 1h e acordar às 4h.
Era o trabalho ou o time do coração. Entretanto a crise estampada na capa dos jornais lhe indicou uma decisão prudente: o trabalho. Naquele ano só veria os jogos do domingo à tarde. Até cochilava, mas das 21h até depois do fim do jogo, eram gritos e fogos de artifício. Sinais que lhe narravam a partida. E quanto mais o time ganhava mais duradouras eram as comemorações. Até na cozinha certa vez ela pôs o colchão. Valeu de nada. Reclamou. E a partir de então gritaram ainda mais alto, acreditando que ela torcia para o adversário.
Estava ensandecida. Sem dormir, com olheiras e mau humor. Se a crise acabasse pediria demissão e iria embora. No entanto ela continuava diariamente nas capas dos jornais. Começou a torcer para que os jogadores do seu time se machucassem. Para que acabasse a energia elétrica no estádio nas quartas-feiras. Mas foi em uma noite de setembro quando virou a si mesma pelo avesso. Seu time foi desclassificado de uma competição importante e assim que soou o apito final ela abriu a janela com um empurrão violento para gritar na noite silenciosa: Chupa!
Ninguém respondeu. Há meses não dormia poucas horas tão profundas.

Rafael Alvarenga
Cabo Frio, 04 de outubro de 2018

Nenhum comentário:

Postar um comentário