sábado, 31 de outubro de 2015

Bala de hortelã

Bala de hortelã


          
  Ele, do outro lado da rua, viu escrito na placa sobre a porta de ferro (agora enrolada próxima ao teto) SUCOS E... O resto não importava, o que tinha mesmo era sede. Dentro da garganta as cordas vocais pareciam de ferro enferrujado. O pigarro oxidado pelo que lhe restava de saliva não dava para um cuspe.
            Irritado atravessou a rua e entrou na lanchonete. Antes de chegar perto do balcão já pedia um suco. Ficha no caixa, disse o atendente interrompendo-o. Pigarreou mais uma vez. Inútil. Algo aquoso, alojado nas adjacências da glote, não falava, porém parecia querer alguma coisa tanto quanto ele queria escarrá-lo. No entanto, estava seco. Miséria! Vá preparando o suco, falou e dirigiu-se ao caixa. Senhor, mas de que é o suco? Perguntou o rapaz de uniforme. Quase pediu um copo d’água. Deu com os ombros, fez um muxoxo e aspirou um ar áspero o qual lhe penetrou os brônquios cheio de uma poeira granulada. Sentiu a bolha gosmenta crescer na garganta alimentada por esses fragmentos. Pararia até de respirar se isso abortasse a aflição.
            Voltou, bateu com a ficha no balcão de vidro e pediu novamente um suco. Assim que o rapaz aproximou-se para atendê-lo antecipou-se em responder: De qualquer coisa, rápido, por favor! Olhava enquanto a comprida tulipa era preenchida com o líquido e pigarreava. Agora pela última vez, pensava. Não deixou nem o copo ser posto sobre o vidro do balcão. Agarrou-o ainda na mão do vendedor. Bebeu com os olhos grudados nas pedras de gelo salientes tilintando medrosas mediante a queda iminente garganta abaixo. Pôs, então, o copo vazio sobre o vidro e respirou ofegante. A enxurrada havia, enfim, lavado a garganta? Não, as cordas vocais continuavam enferrujadas e a bolha parecia ter absorvido por osmose o açúcar abundante do suco. Continuava lá. Nesse instante até maior. Todavia agora ele estava hidratado, poderia cuspi-la lançando mão de toda a força produzida pelo incômodo. Pigarreou novamente. Preparou uma forte sucção, a bolha não seria mais forte agora. Olhou para uma das portas da lanchonete aberta para a rua e viu entrar por ela uma mulher calma, quase sorridente e inquestionavelmente atraente.  A pressão da sucção dentro da garganta fazia a bolha tocar seu pomo de Adão.  Porém aquela mulher enfraqueceu-o. Abismado deixou a bolha voltar para o fundo da garganta. Parado entre a porta e o balcão de vidro, viu-a se aproximar do caixa e sair com algum troco nas mãos, em direção ao atendente. Ele entrou novamente na fila do caixa, e meio indeciso, pediu um sanduíche e outro suco de qualquer coisa. Em pé ela disse ao rapaz de uniforme o que desejava. Era uma voz clara e dividida em grave e agudo. Como se houvesse um instrumento de cordas sendo tocado no fundo daquela garganta límpida a cada palavra pronunciada.
            Ele mal se atrevia a pedir, apenas olhava aquela pele jambo untada pela mistura de cores repousadas numa face sem tempo. Os cabelos salientes corriam com o vento sem se desprender da dona. Como a pipa da criança, que por um fio, é fiel à mão pequenina. O corpo torneado sem exageros exaltava a simplicidade. Já os pés livres entre uma ou outra tira de sandália descansavam, ora um ora outro, apoiado no dorso do qual servia de base. Pode sentar que já vai ficar pronto, senhora, disse o atendente. Ela agradeceu sonora e procurou uma mesa. Ele fez o pedido e novamente sem saber como agir sentou-se próximo. Chegaram para ela, um suco e um sanduíche. Tinha agora as pernas cruzadas dentro do jeans frouxo. Os braços nus e os olhos despreocupados. Ele imaginava-a como alguém sem pressa; cheia de afazeres, conquanto atenciosa a um pequeno sanduíche. Uma menina e uma mulher sem sujeira nos olhos. Preciosa dádiva de quem é capaz de dispensar o choro. Comia como quem tem apetite, mesmo assim não demonstrava ânsia. Mastigava o sabor não a comida.
            Enquanto observava, ele manuseava seu sanduíche para alongar o tempo. Acreditava numa obstinação instintiva e singela tão forte por parte dela, que não ficaria espantado se ela viesse lhe pedir um pedaço do seu sanduíche, cuja única parte mordida ainda estava entre a língua e o céu da boca. Francamente não sabia o que fazer com aquela maçaroca de pão e queijo, muito menos com a bolha perturbadora ainda levando-o a pigarrear. Deveria engolir aquele pedaço de pão e queijo? Engoliu. Entretanto a bolha era inteligente. Driblou o alimento e permaneceu presa às cordas vocais. Não se deixaria ser levada por um pedaço qualquer de pão.
            Ela terminou de comer o seu sanduíche e, sem pressa, amassou o guardanapo com as mãos enquanto limpava os lábios com os lábios. Sabia tudo que tinha a fazer e por isso era calma. Ele pigarreou novamente. Estava irritado. Ela se levantou foi até o caixa procurando algumas moedas dentro da bolsa e em seguida voltou. Aproximou-se dele e deixou sobre a mesa onde ele estava uma bala de hortelã. Olhou-o com as maçãs do rosto acentuadas e sorridentes e disse: Escreva essa estória. Daria um bom conto. Sorriu mais uma vez e saiu com seu jeito ritmado assim como entrou, comeu, olhou e gostou do sanduíche de queijo.

Rafael Alvarenga





segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Boi preto

Boi preto

O boi preto vive, pasta e rumina. Enquanto isso, um vendaval sacode a braquiária. Mas o boi preto que não se interessa por vendavais; por isso vive, pasta e rumina. Tudo se move ao seu redor. O mundo se move sem reclamar por ponto fixo. As pessoas se movem em direção as janelas para trancá-las reclamando do buraco do trinco.
Todo verde sacode como se corresse; como se fosse dotado de pernas. O boi preto é o único que permanece. Um ponto robusto que vive, pasta e rumina. Quanto capim lhe é necessário. Quanto viver, pastar e ruminar! O vento força portões. Quer entrar na marra. O vento assedia roupas íntimas nos varais. Quer saciar sua volúpia. O vento verga os braços do maracujazeiro que se enruga de dor. Quer que o respeitem em meio à bárbara natureza.
Mas o boi preto que não se interessa por vendavais vive, pasta e rumina. E quando se põe a caminhar é por um motivo que eu não vejo. Eu só vejo o vento me apequenar a visão de tantos ciscos que me lacrimejam; só vejo o vento engrandecer o boi preto que vive, pasta e rumina.

Rafael Alvarenga
Itatiaia, 06 de outubro de 2015


sexta-feira, 2 de outubro de 2015

História de uma personagem romântica

História de uma personagem romântica

Seu romantismo lhe custava a inércia de quem sonha sentado com pés deitados no chão. De quem se prostra em cadeira de madeira e somente levanta o corpo para dar alguns passos a fim de não adormecer as pernas que se vão ficando. Seu romantismo fazia com que esperasse – e esperando cobrava dívidas e estipulava castigos dolorosos -. Um romantismo cujas raízes eram ancestrais, mas nem por isso sagradas – afinal a antiguidade não exclui qualquer forma de profanidade. E ela lá, romântica! Vislumbrando cavalo branco, ramo de flores, perfume, roupa engomada, cabelo penteado, trovas e mãos macias. Como desconsidera o vento, a fadiga, o galope, a lama e a poeira das estradas, a aspereza das cordas de couro, a fome e a sede que urram das vísceras galopantes e o cansaço que tanto cala os homens. Se soubesse de tudo isso largaria a cadeira e sairia para encontrar o cavaleiro que se não for guiado beberá água em qualquer poça, comerá farinha em qualquer cuia, descansará em qualquer feno, ouvirá qualquer verdade. Afinal, o corpo fala, e fala alto! Mas e o seu romantismo lá, calando o corpo. Sentando a bunda. Dobrando as mãos. Baixando os olhos. Controlando a fome. Seu romantismo otimista não se atinava para o fato dEle não chegar. Para o fato dEle simplesmente não ser atraído. O romantismo otimista quão traiçoeiro foi neste caso. Na história dessa personagem romântica.

Rafael Alvarenga

Itatiaia, 02 de outubro de 2015