domingo, 5 de abril de 2015

O frio do cachorro

O frio do cachorro

O cachorro se enrola. Seu pelo negro no corpo retorcido pelo frio, lembra-me enorme pedaço de fumo de rolo. O rabo sob o corpo; a cabeça sobre uma mistura cheia de pontas entre patas traseiras e dianteiras. Quando pigarreio ele abre os olhos. Entretanto não move mais nada. Sagaz, deitou-se de modo que para espreitar minha ronronice nada mais tenha que fazer além de abrir os olhos.
Lá fora a casa dele não dá passagem ao desconforto. A porta pequena e o ambiente salvaguardado do frio. Além da luz, que ainda não lhe deve ter penetrado, não anota qualquer molesto. Creio até que ela fique mais agradável já que o sol agora aparece e, mesmo tímido, serve para trazer alguma morna esperança.
Aqui, onde agora o cachorro dorme, é o caminho do vento. Pois entre a janela grande da sala e a porta da cozinha que o dia é incapaz de fechar – as portas das cozinhas são as primeiras a serem abertas e as últimas a serem fechadas. São protegidas pelo almoço e pelas conversas. E cada xícara de café é um soldado montando guarda por pias e mesas. Não há quem se atreva contra o arreganhamento da porta da cozinha -. O cachorro se aquece com minha presença. Sensível à existência e menos subjugado às tolices. Ele se aquece com a presença do outro. O outro sou eu. Eu que continuo sentindo frio. Mesmo com o cachorro ali, mesmo com a xícara de café aqui. Nada se altera.
O cachorro permanece. Enrola-se ainda mais e dorme. Eu penso no seu frio.

Rafael Alvarenga

Itatiaia, 24 de março de 2015

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