quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Infeliz carro prateado

Infeliz carro prateado

Infeliz carro prateado! Bonito sim e até com certa imponência! Sua cor brilhante, seus sistemas elétricos e modernos, sua frente intimidadora como a dos grandes felinos. No entanto sua natureza fora moldada para os caminhos asfaltados.
Trouxeram-no para a estrada de chão. E bastava uma criança pedir um pirulito que lá se ia o carro prateado fazer o sacrifício. Ocorreu que algo foi afetado na mecânica de seu corpanzil. Ficou estacionado na entrada da casa e aconselharam ao dono que chamasse um especialista adequado para o caso. Mas ele diagnosticou que o problema não era grave e garantiu que possuía habilidades para curar a máquina. Comprou uma peça nova, pediu uma ferramenta emprestada e se meteu sob o carro para logo constatar que sua iniciativa piorava o problema.
O abandono do infeliz carro prateado aumentara ali. Disseram que onde estava era inseguro. Que no verão há tempestades. O dono nada fez. E a tempestade chegou lançando uma telha bem no meio do para brisa. Um verdadeiro nocaute!
Pior que começaram as reclamações, pois o carro há tanto estacionado, assassinava a grama que sofria debaixo de sua sombra grossa. Empurraram-no para outra parte do terreno como se fosse um defunto que não cheirasse mal.
O dono da casa mal dizia o carro! O dono do carro o abandonara. Tenho certeza que lhe escorrera alguma lágrima pelos faróis, mas como chovia ninguém percebeu. Alguns dias e as crianças não se preocupavam se a bola esmurraria a lataria e os pássaros se empoleiravam nos retrovisores.
Infeliz carro prateado! Fui me inteirar com o dono da casa o que acontecera com “tão belo modelo automotivo!”. Ele falou muito e por fim afirmou “É um carro amaldiçoado”. Eu que nada entendo de motores e sequer sei dirigir sugeri “Então que se dê um banho de sal grosso nele”. Antes que a testa do sujeito desenrugasse, pedi licença e saí.

Rafael Alvarenga
Itatiaia, 29 de janeiro de 2018


sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Feliz hábito novo

Feliz hábito novo

Há quem diga que nada é mais poderoso que o hábito. Um homem acorda, liga a cafeteira e vai ao banheiro. Volta, enche uma xícara, acrescenta uma colher de açúcar e abre o jornal – agora uma versão digital. Esse homem faz isso há trinta anos.
Aquele outro homem adquiriu o horário da escola. Mesmo que seja domingo ele acorda com o sol ainda tímido. No entanto não pensem que ele durma com as galinhas. Pois manteve outro hábito. Quando precisa da vigília prolongada durante a noite, dorme algumas horas da tarde que tem.
O hábito está dentro do homem. É de estimação. É uma espécie de patrão que pode dizer “Eu te demito!”; sim, nossos hábitos têm o poder de nos desempregar de nós mesmos. E quem gostaria de se exonerar de si mesmo? Quem está cansado desse seu eu a ponto de procurar outro para ser o si mesmo? Isso que chamamos eu mesmo é um conjunto de hábitos. De forma que para mudar eu mesmo, preciso mudar meus hábitos. O problema é que me apeguei aos meus hábitos. Não passo um dia sequer sem eles. Não há nada que possa fazer sem a orientação deles. Pelos meus hábitos troquei a cor das paredes da minha casa, me divorciei, parei até de comer pão. Procurei até uma espécie de H.A. (Hábitos Anônimos), mas não achei nada.
O ano virou, mas esse homem continua crendo que o problema são os outros. Tudo bem, às vezes o problema são os outros mesmos. Mas e meus hábitos?
Vou aproveitar que o ano virou e trocar alguns deles. Mas vou pensar com calma. Não posso me perder totalmente desse eu mesmo que sou. Afinal, já estou tão habituado a ele!

Rafael Alvarenga

Itatiaia, 05 de janeiro de 2017