terça-feira, 23 de setembro de 2014

Ela Chegou

Ela chegou

Eu já estava muito preocupado com você. Sei que avisara sobre a longa ausência. E, é claro, agradeço por esse obséquio. Contudo fiquei aqui, acordando no meio da noite, crendo tê-la escutado chegando pelo quintal. Outras vezes quando vinha para casa, o sol e a poeira me castigando pelo caminho, pensei seu nome em voz alta, de forma abatida e saudosista. Quem ouvisse diria se tratar de falecida. Mas eu sabia, você voltaria bem a qualquer momento.
Eu tinha na cabeça uma frase que julgava ótima para iniciar uma crônica inteiramente dedicada a toda sua existência. Mas como você não vinha me sentia como que pouco a vontade para dizê-la em substantivos e adjetivos escolhidos a dedo.
Tanto júbilo já me dera sua presença. Entretanto como era duro saber que havia de dividi-la com tantos outros; a bem da verdade, com todos os outros. Era eu quem a chamava. Clamando seu nome num amor cheio de pudor. Bastava um pedaço de braço seu caindo sobre o mundo para me esquentar a insônia.  Mas sua generosidade encantadora derramava-a nua, como se vem ao mundo, na casa de Pedro, de José, de Antônio, de Rafael, de João.
Depois de todos esses pensamentos ontem você chegou. Primeiro na forma de uma chuvinha fina, engrossando aqui e ali. E que perfume trazia! Que elegância ao andar pela rua! Cheguei a abrir a janela. Deixando-a entrar um pouco. Em seguida fui ao quintal sob o pretexto de buscar qualquer coisa. Senti você tocando a ponta do meu nariz. Que bom que você choveu aqui. Eu já estava muito preocupado com você.

Rafael Alvarenga
Itatiaia, 21 de setembro de 2014


quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Testamento

Testamento

Deixo nessas linhas, para que saibam todos os meus herdeiros e quem mais for de interesse, as coisas mais valiosas que possuo. As riquezas todas que acumulei sem qualquer temperança. Os valores que sequer um dia consegui calcular, tanto eram perante os anos de minha vida.
Deixo os milhões de estrelas que vi. Mais valiosas que diamantes, porque não vivem de refletir luz alheia como fazem tantos de nós.
Deixo a sensação de temor e aventura que tomou meus braços e pernas quando tentei atravessar a água grossa de um rio autoritário.
Deixo a sensação que ficou na sola de meus pés quando pisei descalço em uma compridão de folhas secas esquecido do perigo de haver sob elas uma magnífica caranguejeira.
Deixo o que ficou em meus olhos naquela tarde setembrina quando ia pela trilha, cabeça baixa, pensamentos tumultuados. Até que fora como um choque, repentino e eterno, perceber o amarelo bruto e derramado do ipê selvagem no meio do mato.
Deixo também a reflexão sobre o medo, feita um dia após retornar a casa pela rua tão escura e lisa quanto casca de jabuticaba. Não era cristão, mas quando demônios mil me povoaram naquela noite bradei que Deus estava comigo.
Deixo o sabor da primeira amora mastigada. E o sentimento, àquele instante, de ter sido insensível a doçura delicada do fruto. Visto a mecanicidade bestial da mordida.
Infelizmente o que não posso deixar foi o que me disse o vento. Não sei falar dessa música instrumental. Todavia alegrem-se meus herdeiros! As belezas que lhes deixo ainda estão aí, no mundo todo.

Rafael Alvarenga

Itatiaia, 18 de setembro de 2014